Em um fim de semana ensolarado do já saudoso verão paulistano, resolvi,
finalmente, preencher uma lacuna imperdoável em minha experiência cultural da
cidade: fui conhecer a Casa Modernista, no bairro da Vila Mariana, primeira edificação
do gênero do Brasil. No entanto, assim que atravessei o portão de entrada, acessei
o jardim e avistei a construção, notei que não havia viva alma lá dentro além
do vigia. Incrustada no interior de um parque de 13 mil metros quadrados, a residência
quase centenária projetada por seu ilustre ex-morador, o arquiteto russo
Gregori Warchavchik (1896-1972), é ampla, arejada e luminosa, porém exala
melancolia. A vida abandonou-a faz tempo.
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Foto: Simone Catto |
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O jardim: grande área verde mal aproveitada - Foto: Simone Catto |
Somente quando estava já no interior da casa, olhando a vista do
terraço, visualizei um casal jovem entrando. Pouco depois, trocando umas
palavras com eles sobre o estado de conservação do espaço, descobri que o rapaz
era estudante de arquitetura. E após visitar todos os ambientes e descer
novamente para explorar o jardim, finalmente vi uma mamãe entrar lentamente de
mãos dadas com um garotinho de uns três anos, empurrando um carrinho
e conversando com a criança. Provavelmente, uma moradora do bairro. A única
vantagem daquele vazio todo era uma inegável sensação de paz, ao mesmo tempo em
que sentia uma espécie de tristeza pelo abandono do lugar.
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Foto: Simone Catto |
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Foto: Simone Catto |
Embora tenha sido
tombada em 1983 e salva, literalmente, do "tombamento por terra" por uma
construtora que pretendia erigir no local um condomínio ironicamente denominado "Palais Versailles" (Santa Maria das Causas Antibregas, rogai por nós!), a construção foi sistematicamente negligenciada pelo poder público. A casa projetada em 1927 e finalizada
em 1928, assim como o imenso jardim que a circunda, estão mal preservados, com seus
grandes espaços vazios ou, na melhor das hipóteses, subaproveitados. Um
cemitério tem mais vida, sério. Muito mais. Além de ser restaurado como se deve, o lugar mereceria sediar exposições,
cursos, palestras, clubes de leitura. Mereceria ter um café para atrair e
acolher as pessoas. Basta ver o exemplo da Casa das Rosas, na Av. Paulista. É
inadmissível que uma obra arquitetônica tão importante no contexto da história não
só de São Paulo, mas também do país, seja tão menosprezada pelo Estado, embora deva confessar que, em se tratando de Brasil, isso não me surpreende,
assim como possivelmente também não deve surpreender o leitor. Afinal, a longa
história de descaso com os bens públicos e o patrimônio artístico-cultural é
uma triste tradição por aqui – bastam alguns passos nas vias mais icônicas da
capital paulista para constatar essa tragédia que se estende a todo o território
nacional.
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Parte do salão principal, no térreo, que deve ter abrigado animadas festas e conversas - Foto: Simone Catto |
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Vista da varanda superior, com o tipo de pilar muito utilizado na arquitetura modernista - Foto: Simone Catto |
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Detalhe do piso superior - Foto: Simone Catto |
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Esse dormitório no andar superior, em estado lastimável, provavelmente pertencia a uma criança, a julgar pelo padrão dos restos de decoração nas paredes - Foto: Simone Catto |
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Detalhe do afresco de um dos dormitórios, provavelmente infantil - Foto: Simone Catto |
Warchavchik criou o
projeto da casa apenas quatro anos após sua chegada ao Brasil, em 1923, imbuído
do espírito modernista que trazia da Europa e incentivado pela esposa, a milionária
Mina Klabin, que simpatizava com as ideias arrojadas do marido e idealizou o
jardim de plantas tropicais que circunda a residência. Pioneira, Mina utilizou cactos e mandacarus, plantas até então não utilizadas nos jardins brasileiros. Não existia nenhuma casa
com esse estilo em terras tupiniquins e, ao substituir os ornamentos vigentes
na arquitetura de então por linhas retas e despojadas, o arquiteto chocou os
puristas, mas atraiu a atenção do colega suíço Le Corbusier (1887-1965), que
visitou a casa ainda em construção e o convidou para ser o delegado da América
do Sul nos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (Ciams).
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Detalhe da fachada - Foto: Simone Catto |
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A fachada original mostra a simetria, atualmente inexistente, da Casa Modernista. |
A planta da casa não diferia, em funcionalidade, daquelas então vigentes em São Paulo; a diferença é que foi despojada dos ornamentos que eram moda à época. O uso de vidros em amplas superfícies e a concepção arquitetônica, que
privilegia a fluidez dos espaços em ambientes que se intercomunicam,
tornaram-na uma construção solar, banhada de ar e luz.
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O hall superior interliga todos os ambientes, possibilitando a circulação de ar e luz - Foto: Simone Catto |
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Outro detalhe do andar superior - Foto: Simone Catto |
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Detalhe da cozinha - Foto: Simone Catto |
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Cozinha - Foto: Simone Catto |
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Foto: Simone Catto |
Na época em que o arquiteto ocupava a residência com a família, peças de
teatro eram encenadas no jardim a uma plateia de familiares e amigos, e a
piscina, atualmente suja e vazia, devia ferver de vida com os risos, as
conversas e a diversão de todos.
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Detalhe do jardim - Foto: Simone Catto |
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A piscina suja e abandonada, ao fundo, vista do terraço superior - Foto: Simone Catto |
Posteriormente,
Warchavchik fez uma sucessão de casas de classe média na rua Berta, uma ao lado
da outra, a poucos metros da Casa Modernista. Estas tiveram melhor sorte que a
irmã primogênita: embora tombadas, estão habitadas por famílias, têm a
arquitetura preservada e vão muito bem, obrigada. É obra de autoria do
arquiteto, também, a construção que abriga o atual Museu Lasar Segall, na mesma
rua das casinhas, projetada em 1932 para ser residência do artista
expressionista parente da mulher, igualmente judeu e proveniente do leste
europeu – Lasar Segall (1889-1957) era lituano.
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As casas perfiladas na Rua Berta, projetadas por Warchavchik - Foto: Luiz Carlos Murauskas / FolhaPress |
Pouco antes, em 1931, foi
o arquiteto Lucio Costa (1902-1998) que convidou Warchavchik, a essa
altura naturalizado brasileiro, a dar aulas na Escola Nacional de Belas Artes (Enba), no Rio de Janeiro, tornando-o
professor da primeira geração de arquitetos modernos. Como resultado, o russo também
criou as primeiras obras modernas do Rio e ampliou sua atuação naquela cidade.
Sempre que me deparo com um exemplo que atesta o estado
lastimável de nosso patrimônio cultural, como ocorre com a Casa Modernista, fatalmente
acabo pensando como países tão pequeninos, como os da Europa, conseguem deter,
em seus minúsculos territórios, uma quantidade tão grande de riquezas
artísticas e arquitetônicas. Tudo bem que são países muito antigos, com
civilizações que remontam a séculos e, por serem mais velhos, é natural que
tenham tido mais tempo cronológico para acumular um patrimônio mais respeitável
do que países ditos do Novo Mundo, "descobertos" e colonizados mais de 1.500
anos depois. Mas não se trata só disso. De nada adiantaria esses países serem tão
antigos se alguém, ao longo desse tempo, não tivesse tido uma preocupação genuína de valorizar e preservar sua cultura ancestral. Se esses países não tivessem engendrado
cidadãos orgulhosos de suas origens, detentores de uma boa dose de ufanismo e francamente
empenhados em proteger a base histórica sobre a qual foram erigidos e da
qual também são produto, pouco ou nada dessas riquezas teria restado, ainda mais se considerarmos a quantidade de guerras que enfrentaram. A
questão, portanto, é cultural. O fato de um país ser novo pelos parâmetros
históricos, como ter nascido quinhentos anos atrás, não justifica, em absoluto, a negligência
com seu patrimônio histórico e artístico. Porque todo país, sem exceção,
tem uma história. E se ela não foi preservada é porque, antes que fosse
perdida, outros valores sérios se perderam primeiro pelo caminho. Valores como cultura e civilidade.
Valores que, desconfio, demorarão pelo menos outros quinhentos anos para demolir a
barreira de subdesenvolvimento intelectual e espiritual desta triste nação.
Se você quiser
conhecer a Casa Modernista e, como eu, ficar sonhando com tudo o que poderia
ser feito para ressuscitar o lugar, anote o endereço: rua Santa Cruz, 325 –
Vila Mariana, São Paulo. Dica: a estação Santa Cruz do metrô fica a cerca de
450 metros do local, dá uns cinco minutos a pé. Abre de terça a domingo, das 9h
às 17h, com entrada franca.
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