terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Anita Malfatti um século depois: tributo e resgate no MAM-SP.

Há cem anos foi realizada uma exposição, em São Paulo, que lançaria as bases da arte moderna brasileira. O grande nome por trás do evento foi uma pintora jovem e genial que seria maltratada pela ignorância e provincianismo tupiniquins: Anita Malfatti (1889-1964). E agora, para redimir essa injustiça histórica e celebrar, merecidamente, o centenário daquela mostra revolucionária realizada de 12 de dezembro de 1917 a 10 de janeiro de 1918, o MAM-SP montou a exposição 'Anita Malfatti: 100 anos de arte', com 70 obras da artista, entre desenhos e pinturas. Fui à noite do vernissage e devo dizer que a mostra merece uma nova visita porque está muito bem montada e a homenagem à artista realmente lhe faz justiça. (O único detalhe técnico de que senti falta foi a informação com as dimensões das obras).  

Para alguns, a trajetória artística de Anita Malfatti foi irregular, com altos e baixos. Para mentes mais atentas, porém, aquele que foi denominado como período de "baixos" nada mais foi do que a evidência de que a artista permanecia fiel a seus princípios, se negava a fazer concessões eternas a seu estilo inicial do modernismo e estava consciente das tendências artísticas no Brasil e no mundo.

Foto: Simone Catto

A carreira de Anita pode ser classificada em três momentos:

1) Alemanha e Estados Unidos – estopim do modernismo
2) Período parisiense – produção naturalista
3) Temas populares

A artista pertencia a uma família que tinha condições financeiras de subsidiar seus estudos na Europa, mas, em vez de viajar a Paris, destino de estudo de todos os artistas brasileiros, Anita inicialmente optou pela Alemanha. E lá se foi ela para Berlim, onde teve contato com as obras de Cézanne, Gauguin, Matisse, Van Gogh e várias vanguardas, incluindo o expressionismo alemão, os nabis e os cubistas da Escola de Paris, dentre outros movimentos demolidores.
  
Anita permaneceu na Alemanha de 1910 a 1913, mas restaram poucos trabalhos desse período, como algumas gravuras em metal e pinturas como 'O Jardim', mostrada abaixo. Embora na fase alemã ela já fizesse um uso interessante da cor, essa bela paisagem ainda possui uma estrutura tradicional e lembra as pinturas impressionistas.

Anita Malfatti - 'O Jardim' (1912) - óleo s/ tela colada em cartão - Coleção Gilberto Chateaubriand MAM-RJ
Foto: Simone Catto

A artista realizou retratos ao longo de toda a vida e criou a obra abaixo, 'Meu Irmão Alexandre', ao retornar da Alemanha, no início de 1914. Note que a imagem do retratado divide a tela na diagonal, o que já constitui uma transgressão na arte do retrato.

A. Malfatti - 'Meu Irmão Alexandre' (1914) - óleo s/ tela - Coleção Sylvia Malfatti - Foto: Simone Catto

Vale ressaltar que, embora a artista tenha vivido no epicentro do expressionismo alemão, essa influência só se manifestaria em sua obra após ela se mudar para os Estados Unidos, em 1914, onde permaneceu até 1916. Nova York borbulhava com os "ismos" vanguardistas e as novidades apresentadas na icônica exposição Armory Show, em 1912. Os americanos tomavam contato com o cubismo, o expressionismo e o futurismo e, mais uma vez, Anita estava no lugar certo, na hora certa. Não por acaso, foi nessa cidade que o moderno tomou forma em sua obra.

A. Malfatti - 'Retrato de Mulher (estudo para 'A Boba')' (1915-16)
carvão s/ papel - Museu de Arte Brasileira - MAB-FAAP - Foto: Simone Catto

A paisagem 'O farol', a seguir, foi pintada na ilhota de Monhegan, próxima à fronteira com o Canadá e, ao lado de outras paisagens, consagrou a artista como a pioneira da arte moderna no Brasil. As pinceladas revoltas, com cores vivas, revelam a influência de Cézanne, Van Gogh e de fauvistas como André Dérain.

A. Malfatti - 'O Farol' (1915) - óleo s/ tela - Coleção Gilberto Chateaubriand MAM-RJ - Foto: Simone Catto

É dessa época, também, a pintura 'A Estudante', retrato de uma jovem com um colorido que pode ser tudo, exceto natural, reforçado por deformações anatômicas e um extravagante contraste de formas e cores típicos do expressionismo.

A. Malfatti - 'A Estudante' (1916) - óleo s/ tela - MASP - Foto: Simone Catto

Quando voltou a São Paulo, em 1916, Anita tinha 26 anos e encontrou uma cidade provinciana, bem diferente de tudo o que havia vivenciado até então. Sua família ficou um tanto decepcionada ao constatar que, em vez de uma pintura mais acadêmica e convencional, a jovem havia aprendido e produzido uma arte bem mais rebelde. No entanto, a artista chamou a atenção das pessoas certas: Arnaldo Simões Pinto, diretor da revista Vida Moderna, e o pintor Emiliano Di Cavalcanti ficaram impressionados com a inovação de seus trabalhos e lhe propuseram montar 'A exposição de pintura moderna Anita Malfatti'. Até esse momento, a cidade só havia sediado exposições de arte acadêmica, mas Anita expôs obras que testemunhavam a rica gama de ensinamentos que havia assimilado em suas temporadas no exterior. Apresentou 53 trabalhos realizados em suas viagens e também sua produção recente, que incluía a obra 'Tropical', em sintonia com o debate nacionalista que ocorria em São Paulo à época. A reação inicial da crítica foi boa e Anita até vendeu oito pinturas. Porém, no dia 20 de dezembro de 1917, o escritor Monteiro Lobato publicou, no jornal O Estado de S. Paulo, a famosa e demolidora crítica que associou pejorativamente as obras da artista aos "ismos" da vanguarda europeia e se referiu a elas com termos nada lisonjeiros como "decadência", "arte anormal ou teratológica".

A. Malfatti - 'Tropical' (c.1916) - óleo s/ tela - Pinacoteca do Estado de São Paulo - Foto: Simone Catto

O fato é que o restante da crítica endossou a opinião de Monteiro Lobato e, como consequência, cinco das obras compradas na exposição foram devolvidas. Não sabemos até que ponto esse revés afetou a produção da artista, mas a história conta que o episódio a abalou consideravelmente. O então jovem escritor Oswald de Andrade intercedeu publicamente a seu favor, mas seu pioneirismo só seria reconhecido quatro anos depois, na Semana de Arte Moderna de 1922, na qual ela exibiu vinte obras no Teatro Municipal de São Paulo.

A. Malfatti - 'Retrato de Mário de Andrade III' (c.1923) - óleo s/ tela
Instituto de Estudos Brasileiros - USP - Foto: Simone Catto

Em 1923, Anita embarcou para Paris com uma bolsa de estudos e lá permaneceu por cinco anos. Já era uma artista madura, mas aproveitou ao máximo o período frequentando cursos, ateliês, museus e exposições. Nas férias, viajava pela Europa e registrava paisagens de cidades francesas e italianas em delicadas aquarelas. Diferentemente do que havia visto na Alemanha e nos Estados Unidos, notou que a França vivia uma retomada de tendências realistas, naturalistas e clássicas – um retorno à "ordem", por assim dizer.

A. Malfatti - 'Casario na Encosta (com vulcão e aeroplano)' (década de 1920) - aquarela s/ papel - Coleção particular
Foto: Simone Catto

Nessa época, a artista também pintou cenas de interiores como 'Interior de Mônaco', na qual notamos a influência do estilo "decorativo" de Henri Matisse, Pierre Bonnard e Édouard Vuillard.

A. Malfatti - 'Interior de Mõnaco' (c.1925) - óleo s/ tela - Coleção BM&F Bovespa
Foto: Simone Catto

Ao retornar de Paris, em setembro de 1928, Anita montou uma exposição individual na qual exibiu uma arte mais "comedida", "comportada", menos radical do que aquela produzida na primeira fase. Os conservadores elogiaram e os modernos criticaram, alegando que sua obra havia sofrido uma espécie de "retrocesso". No entanto, a artista nada mais fazia do que permanecer fiel àquilo em que acreditava.

Na década de 30, lecionou arte, expôs bastante e colaborou com importantes mostras no Brasil e no exterior. Sua casa estava sempre repleta de amigos e colegas artistas, dentre os quais se incluíam Volpi, Rebolo e Pennacchi, entre outros. Nessa época, pintou retratos de vários deles, e também de familiares, intelectuais e membros da elite.

A. Malfatti - 'Flávio Motta' (1941-42) - óleo s/ tela - Coleção particular - Foto: Simone Catto

Em 1944, Anita viajou a Minas Gerais, conheceu as cidades históricas e, a partir dali, acrescentou a seu repertório de temas as procissões e festas populares que havia visto naquele Estado. Simplificou deliberadamente as formas de sua pintura, o que estava em sintonia com a valorização da arte naïf naquela década. Em uma carta a Mário de Andrade, escreveu: "Procurei todas as técnicas e voltei à simplicidade, diretamente; não sou mais moderna nem antiga, mas escrevo e pinto o que me encanta." O fato é que Anita estava atenta e receptiva às novidades, postura que a crítica sua contemporânea nem sempre soube compreender.

A. Malfatti - 'O Trolinho' (década de 40) - óleo s/ tela - Coleção Roberto Marinho - Foto: Simone Catto

A. Malfatti - 'Vida na Roça' (c.1956) - Almeida & Dale Galeria de Arte - Foto: Simone Catto

Passados cem anos de quando tudo começou, fica ainda mais evidente como é descabido acusar Anita Malfatti de retrocesso após a fase inicial modernista, uma vez que toda a sua obra, produzida a qualquer tempo, sempre primou por extrema qualidade técnica e estética. Anita foi uma mulher de fases e, em cada uma, pintou ou retratou aquilo que lhe falava ao coração no momento, e da forma que melhor se prestasse para que ela atingisse seu intento – fosse com pinceladas selvagens, contrastes intensos ou formas mais comedidas. Não importa. O que importa, realmente, é que ela era uma mulher artisticamente livre, sempre foi fiel a si mesma e o que resultou disso, em cada período de sua vida, foi uma arte de qualidade excepcional.

Se você gosta de arte, não pode perder! Anote: Exposição 'ANITA MALFATTI - 100 ANOS DE ARTE' - MAM-SP - Parque do Ibirapuera - Av. Pedro Álvares Cabral, s/n. Tel.: (11) 5085-1318 - atendimento@mam.org.br. De terça a domingo, das 10h às 18h (bilheteria até 17h30). Ingressos de R$ 3,00 a R$ 6,00, entrada gratuita aos sábados.

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