quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

A 32ª Bienal deixa uma grande "incerteza viva": o que é arte hoje?

O ano está quase acabando, e lá se foi mais uma Bienal de São Paulo. O que não se foi, e insiste teimosamente em ficar, é a sensação de que sobrou intenção e faltou arte no Ibirapuera. E devo dizer que esse sentimento, infelizmente, parece se agravar a cada nova edição daquela que é considerada a mais importante e abrangente exposição de arte realizada no Brasil.

Escolhi um dia tranquilo para visitar a mostra, uma tarde de quarta-feira abafada e chuvosa, a fim de evitar as multidões e poder apreciar as obras com calma. Aliás, soube que o número de visitantes este ano ultrapassou os 900 mil, uma cifra bem superior àquelas das últimas edições do evento. Denominada 'Incerteza Viva', essa 32ª Bienal tinha, como propósito, refletir sobre questões que atualmente polarizam discussões em todo o mundo, tais como o aquecimento global, a destruição das florestas, desigualdade de gênero, discriminação racial, crise econômica, migração e outras mazelas contemporâneas. A ideia era que as obras de arte suscitassem mais questionamentos do que respostas, posicionando-se como expressões de resistência. É aí que está o problema. Até que ponto uma obra pode ser considerada "arte" ou não passa de mera expressão de uma subjetividade? Será que toda forma de resistência ou protesto, por assim dizer, pode ser denominada arte pelo simples fato de estar materializada na forma de uma pintura, ou de um desenho, vídeo, escultura, instalação ou o que quer que seja? Se uma pessoa que se diz artista cria uma obra e diz que ela é arte, devemos necessariamente acreditar que seja mesmo? Não é a primeira vez que proponho este tipo de questionamento neste blog. Sei que a indagação é polêmica, mas sei também que estou longe de ser a única a fazê-la. Se existe uma "incerteza viva", portanto, creio que ela resida sobretudo nos próprios limites que definem o que é arte atualmente.

Está certo que a percepção da arte contemporânea não ocorre da mesma forma para todo mundo. Cada vez mais, a arte torna-se uma questão subjetiva e as fronteiras entre o que pode ou não ser considerado obra de arte tornam-se tão fluidas quanto a diversidade de repertórios e experiências de quem a vivencia. Quem garante que aquilo que é arte para mim seja considerado arte para outra pessoa? E vice-versa? Estou relatando, aqui, uma experiência que no meu caso foi frustrante, mas que pode não tê-lo sido para outros.

Vista da 32a Bienal: incerteza sobre os próprios limites da arte - Foto: Simone Catto

Achei louvável a iniciativa da curadoria de realizar atividades paralelas para integrar o público e inseri-lo no contexto desejado, ocupando inclusive espaços externos ao prédio da Bienal, mas o que questiono, novamente, é a força e a qualidade dos trabalhos em torno dos quais esse público foi inserido. Outra questão: será que os visitantes realmente captaram o propósito das obras interativas ou as encararam como mero entretenimento? Digo isso porque os textos descritivos de várias obras diziam muito, mas não explicavam quase nada. Sem falar que a semelhança de "propósitos" relatados nos textos de alguns trabalhos era tão grande, que um determinado texto podia muito bem se aplicar a uma obra diferente daquela à qual se referia – é sério! Creio que isso tenha ocorrido devido ao excesso de elasticidade do tema da Bienal - um tema que podia, teoricamente, abarcar todo e qualquer debate, numa espécie de balaio de gatos ideológico.

Entre mortos e feridos, no entanto, devo fazer justiça a algumas obras que me impactaram de alguma maneira por seu resultado estético e eu não poderia deixar de mencioná-las aqui, com o devido mérito a seus criadores.

Gostaria de destacar o conjunto de painéis festivos e multicoloridos realizados em 2016 pela jamaicana Ebony G. Patterson (nascida em 1981), com composições que mesclam elementos da cultura popular e imagens de violência relacionadas às comunidades de Kingston, em seu país. Patterson utilizou fotografias e colagens recobertas por tecidos e ornamentos os mais variados, criando imagens que expressam alegria e brilho, apesar de conterem cenas de opressão social nas quais não faltam crianças negras, bonecas, bijuterias, contas coloridas e imagens de animaizinhos que parecem recortados de livros infantis, entre outros itens. Se o objetivo era realizar uma crítica social, a artista conseguiu alcançá-lo com arte e qualidade, produzindo uma obra que cumpre sua função sem deixar de fazer bem aos olhos. É a prova de que é possível falar de coisas feias sem que seja preciso, para isso, abrir mão da beleza.

Os coloridos e festivos painéis de Ebony G. Patterson - Foto: Simone Catto

Detalhe de um painel de E. G. Patterson - Foto: Simone Catto

E. G. Patterson: cor e exuberância a serviço da denúncia social
Foto: Simone Catto

Colorido meticuloso: fiquei encantada com o trabalho!
Foto: Simone Catto

E não é que minha bolsa poderia fazer parte do painel?!? (rs)
Foto: Simone Catto

Na série 'Rota do Tabaco' (2016), o brasiliense Dalton Paula (nascido em 1982) utilizou, como plataforma, um conjunto de alguidares, pratos de cerâmica que recebem comida e também oferendas em rituais de religiões afro-brasileiras. O artista pintou, no interior dos pratos, personagens que remetem ao passado colonial e aos escravos, notadamente aqueles que trabalharam em três locais que compõem a "rota do tabaco": Piracanjuba, em Goiás; Cachoeira, no Recôncavo Baiano; e Havana, em Cuba. Paula viajou a essas três cidades para pesquisar a herança histórica relacionada a essa cultura agrícola e realizou um trabalho com resultado estético bem interessante.

Dalton Paula - um dos alguidares da série 'Rota do Tabaco' (2016) - Foto: Simone Catto

Dalton Paula - 'Rota do Tabaco' (2016) - Foto: Simone Catto

Chamou minha atenção, também, uma série de fotografias da brasiliense Bárbara Wagner (nascida em 1981), que vive em Recife. Intitulada 'Mestres de Cerimônias' (2016), a série retrata a cena da música brega na periferia da capital pernambucana e escancara, com crueza, a base de pobreza econômica e cultural sobre a qual ela se sustenta. Verdadeiros documentos antropológicos, as fotos registram a realização de videoclipes bregas e seus personagens, dos quais não escapam os MCs, DJs, bailarinos, produtores, empresários e também o público. O que mais grita nessas fotos é o contraste entre a autoestima estratosférica de seus personagens e sua aparente alienação em relação à precariedade sociocultural do meio onde estão mergulhados.

Os 'Mestres de Cerimônias' (2016), de Bárbara Wagner: egos inflados e alienados - Foto: Simone Catto

Foto da série 'Mestres de Cerimônias' (2016), de Bárbara Wagner (2016), que poderia muito bem ter como legenda:
"Não tenho esgoto, mas tenho pernão!"' Triste. - Foto: Simone Catto

Mais uma foto da série 'Mestres de Cerimônias' (2016), de Bárbara Wagner - Foto: Simone Catto

Em minhas conversas e leituras, percebi que muita gente se decepcionou com essa Bienal, algumas pessoas a apreciaram, mas, independentemente da opinião de cada um, creio que é sempre saudável lembrarmos de uma lição: não devemos acreditar em tudo o que vemos, lemos ou ouvimos. E isso se aplica também à arte.

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