Confesso que, até pouco tempo, não tinha muita intimidade com a
obra de Alberto da Veiga Guignard
(Nova Friburgo - RJ, 1896 – Belo Horizonte - MG, 1962). Pintor, professor, desenhista,
ilustrador e gravador, ele foi tema da exposição 'Guignard
– Memória Plástica do Brasil Moderno', realizada recentemente no MAM-SP.
Com curadoria de Paulo Sergio Duarte, a
mostra reuniu mais de 70 obras de quatro gêneros diferentes, entre retratos e autorretratos, paisagens e festas, naturezas-mortas e pintura sacra. Deu para
perceber que emoções variadas guiaram a mão do artista: temos
o Guignard nacionalista, surrealista, modernista e também o Guignard lírico.
Guignard - Sem título (1937) - óleo s/ tela - Coleção Roberto Marinho Foto: Simone Catto |
A
formação na Europa
Guignard mudou-se para a Europa ainda criança, em 1907. Após o
suicídio do pai, foi viver em Munique com a mãe, que se casara com um barão
alemão falido e jogador que dilapidou a fortuna da família, tendo retornado a
seu Rio de Janeiro natal apenas em 1929. A julgar por sua biografia, a infância
do artista deve ter sido um bocado tumultuada!
Nesses mais de
20 anos que residiu no velho continente, Guignard frequentou, em dois períodos
distintos (entre 1917 e 1918 e entre 1921 e 1923), a Königliche
Akademie der Bildenden Künste (Real Academia de Belas Artes) de Munique, onde
estudou com Hermann Groeber (1865-1935) e Adolf Hengeler (1863-1927). Além
disso, estudou com afinco a arte flamenga na Pinacoteca de Munique.
Entre 1925 e 1928, o artista teve a oportunidade de se
aperfeiçoar em Florença, onde se identificou com a obra de Sandro Botticelli
(1444/1445-1510) e Raoul Dufy (1877-1953). Foi naquela cidade que se libertou
da rigidez acadêmica e marcou sua passagem para o modernismo. Posteriormente,
em Paris, ele ainda participou do Salão de Outono.
Seus anos de formação
na Europa coincidiram com a década de 20, período privilegiado da história da
arte em que nasceram e vicejaram vários movimentos transgressores, de forma que
Guignard teve contato com o cubismo, o expressionismo, o dadaísmo e o
surrealismo. A atração que o surrealismo exerceu sobre o artista, que
conheceu o movimento em 1927 e descreveu-o como seu "caminho para a
libertação", segundo um texto autobiográfico, é perceptível em suas "paisagens imaginantes".
Guignard - 'Paisagem Imaginante' (1955) - óleo s/ madeira - coleção particular - RJ Foto: Simone Catto |
As paisagens e festas, aliás, constituíam
a temática que eu mais conhecia da obra do artista. Produzidas a partir dos anos 60, as "paisagens
imaginantes" se caracterizam pela
predominância de fundos verde azulados e acinzentados e elementos que flutuam
no espaço. São cenas de festas juninas
e paisagens mineiras que reúnem, num
mesmo espaço, fogueiras, casebres, pessoas, igrejas e balões que flutuam livres
da gravidade, a exemplo do que fazia Marc Chagall em suas festas ciganas,
criando imagens oníricas e dotadas de uma aparente ingenuidade.
Guignard - 'Noite de São João' (1961) - óleo s/ madeira - Coleção Roberto Marinho Foto: Simone Catto |
No entanto, ao contrário das paisagens ditas naïve, que normalmente têm um caráter
alegremente ingênuo em seu colorido, as paisagens de Guignard possuem uma certa
melancolia que um olhar mais atento consegue captar nos fundos sombrios por
trás das figuras coloridas em primeiro plano. Esse drama era real e presente,
causado pelas vicissitudes que o artista sofreu desde a infância, incluindo a anomalia
física denominada como lábio leporino, que o complexou durante toda a vida e atrapalhou
sua vida amorosa. Sabe-se que, na tentativa de resolver o problema, ele fez cirurgias
corretivas que não foram muito bem-sucedidas. Como se não bastassem os problemas
de saúde e de família, Guignard também perdeu sua única irmã, que morreu
tuberculosa ainda jovem. E as tragédias não param por aí: o artista foi
abandonado pela esposa, a estudante de música alemã Anna Döring, poucos meses
após seu casamento em Munique, em fevereiro de 1923.
Guignard - 'Paisagem Imaginante' (1960) - óleo s/ tela - coleção particular - SP - Foto: Simone Catto |
O quadríptico 'Paisagem Imaginante' (1959) foi realizado sobre quatro painéis, formando uma espécie de biombo óleo s/ madeira - coleção particular - Foto: Simone Catto |
Um outro aspecto das paisagens de Guignard é a influência da
pintura oriental, que ele provavelmente teve a oportunidade de conhecer em suas
visitas a museus e palácios na Europa. A "chinoiserie", moda entre artistas
europeus que tentavam imitar traços da arte chinesa, exerceu certo impacto em
Guignard, com suas transparências e pinceladas diluídas, nas paisagens mineiras
coalhadas de igrejas barrocas e fogueiras de São João. Os elementos que parecem
flutuar num plano indistinto e meio fora de foco criam um efeito etéreo que os chineses
chamam de "montanha d’água".
Guignard - 'Homenagem a Leonardo' (1959) - Acervo Fundação Maria Luísa e Oscar Americano - SP - Foto: Simone Catto |
A influência mais
marcante, entretanto, vem de Minas Gerais, onde o artista lecionou e dirigiu o
curso livre de desenho e pintura da Escola de Belas Artes, a convite do então
governador Juscelino Kubitschek (1902-1976). Naquela ocasião, Guignard se
encantou com cidades históricas como Ouro Preto, Sabará e Mariana, e suas
igrejas coloniais podem ser vistas em várias paisagens do artista. Guignard
mudou-se para Belo Horizonte em 1944 e permaneceu à frente da escola até 1962,
quando, em sua homenagem, ela passou a se chamar Escola Guignard. Por lá passou
muita gente graúda das artes: nada mais, nada
menos que Amilcar de Castro (1920-2002), Farnese de Andrade (1926-1996) e Lygia
Clark (1920-1988), entre outros grandes artistas. Os alunos gostavam
dele e o consideravam um professor democrático e informal. Não foram poucos os
amigos que mencionaram seu bom coração.
Guignard - 'Paisagem Imaginária de Minas' (1947) - óleo s/ madeira - Museu da Inconfidência - Foto: Simone Catto |
Guignard - 'Paisagem de Ouro Preto' (1946) - nanquim e aquarela s/ cartão - coleção particular - Foto: Simone Catto |
Guignard - 'Paisagem de Sabará' (1950) - óleo s/ madeira - Coleção MASP - Foto: Simone Catto |
Apesar de ser querido
pelos alunos e amigos, é notório que Guignard padecia de uma solidão profunda e, de
certa forma, deslocava seu sofrimento para as paisagens que pintava. Suas
festas de São João são tristes, de aspecto sombrio, o oposto de suas
naturezas-mortas, que são pura alegria.
Guignard - 'Noite de São João' (1961) - óleo s/ tela - Museu de Arte da Pampulha Foto: Simone Catto |
Guignard - 'Natureza Morta com Vasos de Antúrios' (1952) - óleo s/ tela Coleção Roger Wright Foto: Simone Catto |
Na pintura 'Vaso com flores' (1932), um vaso vermelho está
apoiado em uma mesa que flutua sobre uma cidade, tendo ao fundo o céu e as
nuvens. Realidade e ficção se misturam e as plantas têm um aspecto surreal, de
coloração vibrante, quase lisérgica.
Guignard - 'Vaso com Flores' (1932) - coleção particular - RJ - Foto: Simone Catto |
Guignard - 'Vaso com Flores' (1957) - óleo s/ tela - coleção particular - Fortaleza Foto: Simone Catto |
As paisagens e festas constituíram apenas uma das vertentes
abordadas na mostra do MAM, mas os retratos e autorretratos também tiveram
presença expressiva, ainda mais se considerarmos que as obras desse gênero são
as mais numerosas na carreira do artista.
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