sexta-feira, 4 de setembro de 2015

'Histórias da Loucura – Desenhos do Juquery': o talento por trás do caos.

Depois de conhecer o fascinante trabalho da Dra. Nise da Silveira (1905-1999), médica psiquiatra brasileira que foi aluna de Carl Jung e mostrou o poder da arte nos processos terapêuticos, eu não poderia deixar de visitar a exposição Histórias da Loucura – Desenhos do Juquery, atualmente no MASP.  

A mostra reúne cerca de 100 desenhos feitos por internos do Hospital Psiquiátrico do Juquery, localizado em Franco da Rocha, São Paulo. As obras pertenciam ao Dr. Osório Thaumaturgo César (1895-1979), fundador e diretor da Escola Livre de Artes Plásticas, que funcionou no hospital entre 1956 e meados da década de 1970. 

Médico psiquiatra do Juquery por mais de quatro décadas, o Dr. Osório César, nascido em João Pessoa, na Paraíba, pertencia a uma geração anterior à da Dra. Nise da Silveira (note que 20 anos separam o nascimento de um e outro) e foi um dos pioneiros no Brasil a pesquisar e a aplicar o uso da arte como recurso terapêutico em pacientes psiquiátricos. Por acreditar no talento e nas qualidades estéticas dos trabalhos dos internos, promoveu exposições de desenhos e pinturas criados no Juquery e o MASP sediou duas delas: uma em 1948, um ano após a inauguração do museu, e outra em 1954. Em 1974, o médico doou sua coleção particular ao MASP.

Uma curiosidade: o Dr. Osório foi casado com a musa do Modernismo Tarsila do Amaral, mostrando que não apenas devia apreciar arte como provavelmente estava habituado a esse universo.

A exposição está dividida em duas salas. Uma delas contém mais de 50 desenhos de artistas diversos, a saber: Antonio Donato de Souza, Armando Natale, Augustinho, Geraldo Simão, Homero Novaes, J. F. Menezes, J. Q., José Ferreira Barbosa, Maria Claudina D’Onofrio, Marianinha Guimarães, O. Doring, Pedro Cornas (O Estudioso), Pedro dos Reis, Sebastião Faria e artistas desconhecidos. Infelizmente, não é mencionado o autor de cada obra, o que tornaria a análise muito mais interessante. A outra sala é dedicada a um único paciente, Albino Braz, que tem 42 desenhos expostos.

Todos os desenhos são realmente muito curiosos. Para mim foi inevitável, ao olhar para eles, fazer elucubrações para tentar imaginar o que se passava na cabeça de seus autores no momento da criação. Havia várias obras de conotações religiosas, por exemplo. Não pude deixar de me lembrar de Carlos Pertuis, o paciente da Dra. Nise da Silveira retratado no filme A Barca do Sol, de Leo Hirszman, exibido há alguns anos na mostra Imagens do Inconsciente, no Ciclo de Cinema e Psicanálise da Cinemateca Brasileira, também resenhado no blog (veja aqui). Diagnosticado como esquizofrênico, Pertuis criou obras proféticas como O Planetário de Deus, a representação do universo numa espantosa mandala macrocósmica. Os desenhos dos artistas do Juquery, no entanto, são quase totalmente figurativos e mostram cenas religiosas facilmente identificáveis, como a aparição da Virgem Maria às crianças e imagens de Jesus.

Obs.: as fotos de algumas obras saíram com o reflexo da película de vidro que as recobre, mas dá para visualizarmos suas características principais.

Aparição da Virgem às crianças - artista não mencionado
Foto: Simone Catto

A representação abaixo de Jesus ao lado de uma mulher que parece uma feiticeira é mais primária, lembrando um desenho infantil.

Artista não mencionado - Foto: Simone Catto

E a seguir, uma representação bem mais elaborada de Cristo, com um ousado manejo de cor. Note o contraste entre o lado direito e esquerdo do rosto. É como se Ele tivesse duas faces ou... dupla personalidade!

Artista não mencionado - Foto: Simone Catto

Achei muito expressivo o desenho abaixo, que representa uma Nossa Senhora. A forma como o artista trabalhou o sombreado nas dobras das vestes revela que ele possuía um razoável conhecimento técnico.

Artista não mencionado - Foto: Simone Catto

Em oposição às representações religiosas, a exposição também exibe desenhos profanos, como nus e outros de natureza francamente sexual, como atestam as obras abaixo.

Artista não mencionado - Foto: Simone Catto

Artista não mencionado - Foto: Simone Catto

A sala dedicada exclusivamente ao paciente Albino Braz tem vários exemplos desse tipo. É curioso notar que ele utiliza um único padrão pictórico para representar o órgão sexual feminino, como vemos nas imagens abaixo.

Desenho de Albino Braz - Foto: Simone Catto

Desenho de Albino Braz - Foto: Simone Catto

O desenho a seguir, também de Albino Braz, mostra um casal em pleno ato sexual, envolto em uma espécie de círculo que lembra uma bola de árvore de Natal. Segundo Carl Jung, na obra O homem e seus símbolos, também resenhada neste blog, a forma esférica simboliza a totalidade do 'self', a integridade do 'eu'. Será que Albino apresentava algum trauma ou distúrbio afetivo-sexual e o enquadramento do ato no interior do círculo significaria uma tentativa de controlar esse fantasma? Ou essa suposta desordem afetiva-sexual era tão grande que ocupava a totalidade de seu 'eu', daí ocupar todo o círculo/self? 

Note também a presença do gato e do pássaro como coadjuvantes nesse mesmo desenho. Esses animais são recorrentes nas obras de Albino, que também representa outros bichos em diferentes ocasiões.

Desenho de Albino Braz - Foto: Simone Catto

Desenho de Albino Braz - Foto: Simone Catto

Abaixo, os animais aparecem numa alegre cena circense.

Desenho de Albino Braz - Foto: Simone Catto

E a seguir, temos uma curiosa "socialite índia" – note o penacho em sua cabeça. Pergunto-me se o homem atrás dela foi representado em dimensões menores por uma questão de perspectiva ou porque seria "menos importante", já que o desenho de seu corpo nem foi concluído...

Desenho de Albino Braz - Foto: Simone Catto

E no próximo desenho, Albino nos fornece uma espécie de bestiário.

Desenho de Albino Braz - Foto: Simone Catto

Uma obra que logo chamou minha atenção foi o castelo da segunda imagem abaixo. Representado de maneira simétrica e preenchido com pequenos quadrados como se fossem janelas, ele me remeteu de imediato a um outro castelo, pintado por Carlos Pertuis, o paciente esquizofrênico da Dra. Nise da Silveira mencionado anteriormente. Segundo a médica, o fato de o castelo estar envolvido por figuras geométricas dispostas simetricamente seria uma tentativa inconsciente do artista de organizar seu caos interior. Será que o paciente do Dr. Osório, a exemplo do paciente da Dra. Nise, também era esquizofrênico?

Obra de Carlos Pertuis, paciente psiquiátrico da Dra. Nise da Silveira.

Obra de paciente psiquiátrico do Dr. Osório César - Foto: Simone Catto

E o que dizer do tigre abaixo, pulando à frente de um trem? Pensaria seu autor em suicídio ou apenas desejou representar uma bela cena?

Artista não mencionado - Foto: Simone Catto

Alguns desenhos são bem prosaicos, como as colegiais representadas a seguir e as duas meninas, cujo traçado tem um poder de síntese que denota verdadeiro talento.

Artista não mencionado - Foto: Simone Catto

Artista não mencionado - Foto: Simone Catto

Abaixo, vemos um homem se desintegrando gradualmente em um traçado cada vez mais esvanecido... será que o artista sentia ocorrer o mesmo com seu 'self' ou se trata apenas de um belo recurso pictórico? Torço para que a segunda hipótese seja a verdadeira!

Artista não mencionado - Foto: Simone Catto

A mostra também tem paisagens, mas bem diferentes entre si. As duas obras a seguir certamente não foram criadas pelo mesmo artista. Pode parecer uma simplificação leviana de minha parte, mas o autor da paisagem superior, tecnicamente muito mais complexa, pareceu-me bem mais atormentado que o da plácida paisagem inferior.

Artista não mencionado - Foto: Simone Catto

Artista não mencionado - Foto: Simone Catto

Guardadas as devidas proporções, a combinação de cores da primeira paisagem lembrou-me Cézanne. Note que há também um homem escondido entre as árvores e que, a seu lado, no solo, parece haver uma lanterna acesa com um facho de luz azul. Será que ele tentava chegar ao píer à direita e sua lanterna caiu ao chão, gerando-lhe um obstáculo? O que significa o mar por trás daquele píer? Desejo de liberdade? Veja, também, que o desenho é todo circundado por uma espécie de moldura desenhada em arcos. Seria uma tentativa do artista de tentar manter algum controle sobre si mesmo? Infelizmente essas respostas perderam-se no tempo (ou no prontuário médico do paciente...), mas, o que podemos afirmar seguramente é que, embora sombria, a composição apresenta uma bela combinação de cores. 

Curiosamente, a paisagem inferior também mostra água. Será coincidência? No entanto, a relação do homenzinho com a visão que tem à sua frente me parece bem mais tranquila. Mesmo de costas, ele parece estar sereno e não temer seu destino.

Não parece ser este o caso do artista da obra a seguir, que desenhou um rosto bem perturbador. E não é para menos: seu autor sofria de esquizofrenia, como atesta a inscrição datilografada em francês no rodapé da imagem, que tem a seguinte tradução:

‘P... Reis -Esquizofrenia crônica.
Resumo –Reticente. Frio. Capacidade
perceptiva comprometida.’

Desenho de P... Reis, paciente esquizofrênico - Foto: Simone Catto

A legenda do desenho anterior, atestando que seu autor era esquizofrênico crônico.

Um dos aspectos mais interessantes da exposição Histórias da Loucura: desenhos do Juquery é justamente esse exercício de tentarmos descobrir ou desvendar o que havia por trás daquelas imagens. É notório, também, o talento da esmagadora maioria dos pacientes ali representados. Muitos detinham conhecimentos de luz e sombra, perspectiva, composição e manejo de cor, adquiridos possivelmente na Escola de Artes Plásticas criada pelo Dr. Osório no hospital. Recomendo a mostra a todos!

HISTÓRIA DA LOUCURA: DESENHOS DO JUQUERY está em exposição no MASP – Museu de Arte de São Paulo - Av. Paulista, 1578 – tel.: (11) 3149-5959 – www.masp.art.br. Abre de terça a domingo, das 10h às 18h (bilheteria aberta até 17h30); quinta-feira, das 10h às 20h (bilheteria até 19h30). O ingresso custa R$ 25,00 a inteira e R$ 12,00 a meia. A entrada é gratuita às terças-feiras, o dia todo, e quintas-feiras, a partir das 17h. Até 11/10.

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