Depois
de conhecer o fascinante trabalho da Dra. Nise da Silveira (1905-1999), médica
psiquiatra brasileira que foi aluna de Carl Jung e mostrou o poder da arte nos
processos terapêuticos, eu não poderia deixar de visitar a exposição Histórias
da Loucura – Desenhos do Juquery, atualmente no MASP.
A
mostra reúne cerca de 100 desenhos feitos por internos do Hospital Psiquiátrico do Juquery, localizado em Franco da
Rocha, São Paulo. As obras pertenciam ao Dr. Osório Thaumaturgo César (1895-1979),
fundador e diretor da Escola Livre de Artes Plásticas, que funcionou no
hospital entre 1956 e meados da década de 1970.
Médico
psiquiatra do Juquery por mais de quatro décadas, o Dr. Osório César, nascido
em João Pessoa, na Paraíba, pertencia a uma geração anterior à da Dra. Nise da
Silveira (note que 20 anos separam o nascimento de um e outro) e foi um dos
pioneiros no Brasil a pesquisar e a aplicar o uso da arte como recurso
terapêutico em pacientes psiquiátricos. Por acreditar no talento e nas
qualidades estéticas dos trabalhos dos internos, promoveu exposições de
desenhos e pinturas criados no Juquery e o MASP sediou duas delas: uma em 1948,
um ano após a inauguração do museu, e outra em 1954. Em 1974, o médico doou sua
coleção particular ao MASP.
Uma
curiosidade: o Dr. Osório foi casado com a musa do Modernismo Tarsila do
Amaral, mostrando que não apenas devia apreciar arte como provavelmente estava
habituado a esse universo.
A
exposição está dividida em duas salas. Uma delas contém mais de 50 desenhos de artistas
diversos, a saber: Antonio Donato de Souza, Armando Natale, Augustinho, Geraldo
Simão, Homero Novaes, J. F. Menezes, J. Q., José Ferreira Barbosa, Maria
Claudina D’Onofrio, Marianinha Guimarães, O. Doring, Pedro Cornas (O Estudioso),
Pedro dos Reis, Sebastião Faria e artistas desconhecidos. Infelizmente, não é mencionado o autor de cada obra, o que tornaria a análise muito mais interessante. A outra sala é
dedicada a um único paciente, Albino Braz, que tem 42 desenhos expostos.
Todos
os desenhos são realmente muito curiosos. Para mim foi inevitável, ao olhar
para eles, fazer elucubrações para tentar imaginar o que se passava na cabeça
de seus autores no momento da criação. Havia várias obras de conotações
religiosas, por exemplo. Não pude deixar de me lembrar de Carlos Pertuis, o
paciente da Dra. Nise da Silveira retratado no filme A Barca do Sol, de Leo
Hirszman, exibido há alguns anos na mostra Imagens do Inconsciente, no Ciclo de Cinema e Psicanálise da Cinemateca Brasileira, também resenhado no blog
(veja aqui). Diagnosticado como esquizofrênico, Pertuis criou obras proféticas
como O Planetário de Deus, a representação do universo numa espantosa
mandala macrocósmica. Os desenhos dos artistas do Juquery, no entanto, são quase
totalmente figurativos e mostram cenas religiosas facilmente identificáveis,
como a aparição da Virgem Maria às crianças e imagens de Jesus.
Obs.: as fotos de algumas obras saíram com o reflexo da película de vidro que as recobre, mas dá para visualizarmos suas características principais.
Aparição da Virgem às crianças - artista não mencionado Foto: Simone Catto |
A representação abaixo de Jesus ao lado de uma mulher que parece uma feiticeira é mais primária, lembrando um desenho infantil.
Artista não mencionado - Foto: Simone Catto |
E a seguir, uma representação bem mais elaborada de Cristo, com um ousado manejo de cor. Note o contraste entre o lado direito e esquerdo do rosto. É como se Ele tivesse duas faces ou... dupla personalidade!
Artista não mencionado - Foto: Simone Catto |
Achei muito expressivo o desenho abaixo, que representa uma Nossa Senhora. A forma como o artista trabalhou o sombreado nas dobras das vestes revela que ele possuía um razoável conhecimento técnico.
Artista não mencionado - Foto: Simone Catto |
Em oposição às representações
religiosas, a exposição também exibe desenhos profanos, como nus e outros de natureza
francamente sexual, como atestam as obras abaixo.
Artista não mencionado - Foto: Simone Catto |
Artista não mencionado - Foto: Simone Catto |
A sala dedicada exclusivamente ao
paciente Albino Braz tem vários exemplos desse tipo. É curioso notar que ele utiliza
um único padrão pictórico para representar o órgão sexual feminino, como vemos nas
imagens abaixo.
Desenho de Albino Braz - Foto: Simone Catto |
Desenho de Albino Braz - Foto: Simone Catto |
O desenho a seguir, também de Albino Braz, mostra um casal em pleno ato sexual, envolto em uma espécie de círculo que lembra uma bola de árvore de Natal. Segundo Carl Jung, na obra O homem e seus símbolos, também resenhada neste blog, a forma esférica simboliza a totalidade do 'self', a integridade do 'eu'. Será que Albino apresentava algum trauma ou distúrbio afetivo-sexual e o enquadramento do ato no interior do círculo significaria uma tentativa de controlar esse fantasma? Ou essa suposta desordem afetiva-sexual era tão grande que ocupava a totalidade de seu 'eu', daí ocupar todo o círculo/self?
Note também a presença do gato e do pássaro como coadjuvantes nesse mesmo desenho. Esses animais são recorrentes nas obras de Albino, que também representa outros bichos em diferentes ocasiões.
Desenho de Albino Braz - Foto: Simone Catto |
Desenho de Albino Braz - Foto: Simone Catto |
Abaixo, os animais aparecem numa alegre
cena circense.
Desenho de Albino Braz - Foto: Simone Catto |
E a seguir, temos uma curiosa "socialite
índia" – note o penacho em sua cabeça. Pergunto-me se o homem atrás dela foi
representado em dimensões menores por uma questão de perspectiva ou porque
seria "menos importante", já que o desenho de seu corpo nem foi concluído...
Desenho de Albino Braz - Foto: Simone Catto |
E no próximo desenho, Albino nos
fornece uma espécie de bestiário.
Desenho de Albino Braz - Foto: Simone Catto |
Uma obra que logo chamou minha atenção foi
o castelo da segunda imagem abaixo. Representado de maneira simétrica e preenchido com pequenos
quadrados como se fossem janelas, ele me remeteu de imediato a um outro
castelo, pintado por Carlos Pertuis, o paciente esquizofrênico da Dra. Nise da
Silveira mencionado anteriormente. Segundo a médica, o fato de o castelo estar envolvido por figuras geométricas dispostas simetricamente
seria uma tentativa inconsciente do artista de organizar seu caos interior.
Será que o paciente do Dr. Osório, a exemplo do paciente da Dra. Nise, também
era esquizofrênico?
Obra de Carlos Pertuis, paciente psiquiátrico da Dra. Nise da Silveira. |
Obra de paciente psiquiátrico do Dr. Osório César - Foto: Simone Catto |
E
o que dizer do tigre abaixo, pulando à frente de um trem? Pensaria seu autor
em suicídio ou apenas desejou representar uma bela cena?
Artista não mencionado - Foto: Simone Catto |
Alguns
desenhos são bem prosaicos, como as colegiais representadas a seguir e as duas
meninas, cujo traçado tem um poder de síntese que denota verdadeiro talento.
Artista não mencionado - Foto: Simone Catto |
Artista não mencionado - Foto: Simone Catto |
Abaixo,
vemos um homem se desintegrando gradualmente em um traçado cada vez mais
esvanecido... será que o artista sentia ocorrer o mesmo com seu 'self' ou se
trata apenas de um belo recurso pictórico? Torço para que a segunda hipótese
seja a verdadeira!
Artista não mencionado - Foto: Simone Catto |
A mostra também tem paisagens, mas bem diferentes entre si. As duas obras a seguir
certamente não foram criadas pelo mesmo artista. Pode parecer uma simplificação
leviana de minha parte, mas o autor da paisagem superior, tecnicamente muito mais complexa, pareceu-me bem mais atormentado
que o da plácida paisagem inferior.
Artista não mencionado - Foto: Simone Catto |
Artista não mencionado - Foto: Simone Catto |
Guardadas as devidas proporções, a combinação de cores da primeira paisagem lembrou-me Cézanne. Note que há também um homem escondido entre as árvores e que, a seu lado, no solo, parece haver uma lanterna acesa com um facho de luz azul. Será que ele tentava chegar ao píer à direita e sua lanterna caiu ao chão, gerando-lhe um obstáculo? O que significa o mar por trás daquele píer? Desejo de liberdade? Veja, também, que o desenho é todo circundado por uma espécie de moldura desenhada em arcos. Seria uma tentativa do artista de tentar manter algum controle sobre si mesmo? Infelizmente essas respostas perderam-se no tempo (ou no prontuário médico do paciente...), mas, o que podemos afirmar seguramente é que, embora sombria, a composição apresenta uma bela combinação de cores.
Curiosamente,
a paisagem inferior também mostra água. Será coincidência? No entanto, a
relação do homenzinho com a visão que tem à sua frente me parece bem mais
tranquila. Mesmo de costas, ele parece estar sereno e não temer seu destino.
Não
parece ser este o caso do artista da obra a seguir, que desenhou um rosto bem
perturbador. E não é para menos: seu autor sofria de esquizofrenia, como atesta
a inscrição datilografada em francês no rodapé da imagem, que tem a seguinte tradução:
‘P... Reis -Esquizofrenia crônica.
Resumo –Reticente. Frio. Capacidade
perceptiva comprometida.’
Desenho de P... Reis, paciente esquizofrênico - Foto: Simone Catto |
A legenda do desenho anterior, atestando que seu autor era esquizofrênico crônico. |
Um
dos aspectos mais interessantes da exposição Histórias da Loucura: desenhos do
Juquery é justamente esse exercício de tentarmos descobrir ou desvendar
o que havia por trás daquelas imagens. É notório, também, o talento da
esmagadora maioria dos pacientes ali representados. Muitos detinham
conhecimentos de luz e sombra, perspectiva, composição e manejo de cor,
adquiridos possivelmente na Escola de Artes Plásticas criada pelo Dr. Osório no hospital. Recomendo a mostra a todos!
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