sexta-feira, 26 de abril de 2013

'O Sonho de Wadjda'. O 1º longa de ficção rodado por uma mulher na Arábia Saudita.

Anteontem tive uma experiência ao mesmo tempo deliciosa e edificante. Fui assistir à pré-estreia de 'O sonho de Wadjda' (2012), da diretora Haifaa Al-Mansour, 38, primeira mulher a rodar um longa de ficção na Arábia Saudita. Esse evento faz parte de uma série que o 'Reserva Cultural' costuma promover e inclui uma pré-estreia, coquetel e debate com o diretor ou outro convidado relacionado à realização do filme.

Infelizmente, não pudemos contar com a presença da diretora porque seu visto de viagem não saiu a tempo. Seria muito bom ouvir o que ela teria a dizer sobre as infindáveis dificuldades com que as mulheres se deparam, na Arábia Saudita, para realizar as atividades mais básicas do dia a dia devido ao machismo e à opressão religiosa. O que dizer, então, da realização de um filme?!

Dado o número de espectadores que lotaram a Sala 1 do 'Reserva Cultural', o tema deve despertar interesse. Havia pessoas das mais diversas idades, sozinhas ou acompanhadas, desde jovens estudantes até gente de meia-idade, casais e senhores de cabelos brancos. Todos ávidos e curiosos, imagino, para bater um papo com Haifaa Al-Mansour.

Após a sessão, o pessoal que lotou a sala se juntou para o coquetel, onde pudemos trocar ideias sobre o filme. 
Foto: Simone Catto

Mas vamos ao filme, que tem estreia prometida para o dia 3 de maio nos cinemas brasileiros. Wadjda, a protagonista, é uma pré-adolescente saudita que passa os dias sonhando em ter uma bicicleta para poder brincar com seu amigo Abdullah. A menina tenta juntar dinheiro para comprar a bicicleta confeccionando pulseirinhas de lã (aliás, proibidas) para vender às colegas da escola, mas há um problema: na Arábia Saudita, meninas ditas "honradas" não podem andar de bicicleta. As histórias mais estapafúrdias são incutidas nas cabecinhas das pobres crianças, como a de que andar de bicicleta pode impedi-las de gerar filhos mais tarde. É inacreditável como um prazer aparentemente tão simples e saudável como andar de bicicleta, que é também um meio de transporte, seja inacessível às menininhas sauditas.

Wadjda sonha em circular numa bicicleta como a de seu amigo Abdullah e não vai se cansar enquanto não conseguir.

Conhecendo seu desejo de possuir uma bicicleta, Abdullah presenteia a amiguinha com um capacete.

E já que estávamos falando da opressão feminina num país ultraconservador, basta citar alguns exemplos: mulheres não podem dirigir na Arábia Saudita e, por isso, são obrigadas a ter motoristas para se deslocarem. São obrigadas também a usar o hijad, o véu islâmico negro que as cobre da cabeça aos pés, deixando apenas os olhos à mostra. Além disso, mulheres precisam da autorização de um homem para viajar, ter algum trabalho remunerado ou até cursar o ensino superior. E isso só para citar situações que aparecem no filme – certamente, deve haver muitas outras que desconhecemos.

Aparentemente, a menina Wadjda pertence a um tipo de "classe média" saudita. Mora com a mãe professora e o pai ausente numa casa modesta em um bairro árido e poeirento da capital, Riad, mas desfruta de alguns confortos: joga videogame na TV de plasma, estuda numa boa escola (dentro daquilo que deve ser considerado uma "boa escola" para meninas na Arábia Saudita), a comida é abundante no prato e a mãe tem condições de eventualmente se dar alguns luxos, como a compra de um vestido novo.

A sala da família em um dos raros momentos em que o pai da menina está em casa com a família.

A diretora da escola de meninas onde Wadjda estuda é uma mulher bonita e severa, mas todas comentam que tem um segredo: 
um ladrão que supostamente teria invadido sua casa era, na realidade, um amante. 

A mãe de Wadjda, uma morena jovem e bonita que trata a filha com carinho e desvelo, sente na pele o tratamento inferior dispensado às mulheres. A começar pelo marido, que quase nunca está em casa e, para sua infelicidade, está em busca de uma segunda esposa – na Arábia Saudita, a poligamia é permitida. O motorista que a leva à escola onde leciona, que fica a quilômetros de distância, é um tipo rude e grosseiro. Quando não está trabalhando, a mulher vive para cuidar da filha e agradar ao marido, que raramente está presente para apreciar seus esforços. Deseja cortar os belos e longos cabelos, mas não o faz, porque o marido "gosta deles longos e macios". Prepara refeições maravilhosas para agradar ao marido e aos amigos que o visitam, mas, quando isso acontece, ela e a filha não podem participar do banquete e ficam com as sobras. E por aí vai. A menina observa tudo, silenciosa, e exala inconformismo.

A mãe de Wadjda é uma mulher jovem e bonita, porém desprezada pelo marido machista.

A chance de Wadjda adquirir sua bicicleta aparece quando a escola realiza um concurso sobre os preceitos do Alcorão e o prêmio em dinheiro é mais do que suficiente para ela realizar seu sonho. A partir daí, até então avessa aos costumes e assuntos religiosos, a menina entra para um grupo de estudos e passa a estudar o Alcorão com afinco a fim de vencer o certame.

Wadjda, a segunda da esquerda para a direita, em seu grupo de estudos do Alcorão: tudo para ganhar o prêmio do concurso 
e comprar sua tão desejada bicicleta.

O olhar de Al-Mansour sobre a sensibilidade da criança e seu desejo de liberdade, e também sobre a infelicidade da mãe e a condição feminina em seu país geraram um filme terno e bem feito. Difícil imaginar como conseguiu filmar uma história com tal conteúdo em um país no qual a censura permeia todos os meios de comunicação e atividades culturais, podendo ordenar prisões e outras punições a quem supostamente "ofenda" os costumes árabes.

Apesar de toda a burocracia, a diretora conseguiu as autorizações necessárias para filmar, mas vira e mexe a polícia aparecia no set para checá-las. Nas regiões mais conservadoras, a equipe de filmagem chegou até mesmo a sofrer ameaças da população local.

Haifaa Al-Mansour, a corajosa diretora e roteirista do filme.

Em uma entrevista à Folha de S. Paulo, Al-Mansour relatou que, quando era criança, seu pai "costumava receber cartas de familiares, de amigos e do imã da mesquita" em frente à casa onde moravam pedindo-lhe que mantivesse a filha "sob controle" e a proibisse de se tornar cineasta. Felizmente, a diretora teve a sorte de nascer no seio de uma família amorosa e muito mais iluminada que a média em seu país, e seus pais nunca se incomodaram com as opiniões alheias sobre a filha. Tanto é verdade, que a moça graduou-se em literatura pela Universidade Americana no Cairo e fez mestrado em direção e estudos de cinema na Universidade de Sydney, Austrália.

A propósito, o contato com o cinema começou cedo. Em sua infância, o pai costumava exibir para ela e os 11 irmãos antigos filmes egípcios e produções de Bollywood em VHS. Mas foi mais tarde, quando conheceu os filmes americanos, que Al-Mansour começou a se interessar de verdade por cinema.

A diretora ainda não sabe se o seu primeiro longa sequer será exibido em seu país, dadas as restrições ao funcionamento de cinemas. Boa parte da população assiste a filmes estrangeiros por meio de DVDs, download na internet e também pela televisão via satélite, embora a venda, a instalação e o uso de antenas de recepção de satélite sejam proibidos.

No entanto, apesar das inúmeras restrições, a situação feminina na Arábia Saudita teve uma melhora sutil. Em janeiro deste ano, decidiu-se que as mulheres deverão compor um quinto das 150 cadeiras da Shura (Conselho Consultivo da Arábia Saudita). No ano passado, pela primeira vez, mulheres puderam representar o país numa Olimpíada.

E mais: no início deste mês, a Arábia Saudita passou a permitir que mulheres andem de bicicleta, mas apenas em áreas de lazer e com um "guardião" masculino. Teria sido esse leve sopro de "liberalidade" influência do filme de Al-Mansour? Se for... Alá seja louvado!

'O Sonho de Wadjda' (2012), uma coprodução entre Arábia Saudita e Alemanha, ganhou o  prêmio Dioraphte, no Festival de Roterdã, e o prêmio da Confederação Internacional dos Cinemas de Arte, no Festival de Veneza.

Elenco parcial:

Waad Mohammed – Wadjda
Reem Abdullah – mãe de Wadjda
Abdullrahman Al Gohani – Abdullah, amigo de Wadjda
Ahd Kamel – Sra. Hussa, a diretora da escola
Sultan Al Assaf – pai de Wadjda

Não deixe de assistir ao filme, que chega aos cinemas no dia 3 de maio. Vale a pena compartilhar do olhar sensível da diretora para mergulhar no mundo feminino saudita por meio da trajetória de Wadjda, cujo sonho deve povoar os desejos de tantas outras meninas de seu país.

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