De uns seis anos para cá, cada vez que visito a Bienal de Arte de São Paulo fica mais
veemente meu questionamento interno sobre se o que tenho visto por lá pode ser realmente
chamado de arte. Tudo bem que essa discussão não é nova e que até já virou clichê
com relação à arte contemporânea. Só que, agora, a questão está ainda mais gritante.
Adquiriu uma dimensão tal, que se tornou inevitável, pelo menos para mim, postar-me
diante de certas obras e me perguntar se elas são mesmo arte ou apenas
expressões pessoais, manifestações de uma individualidade que deseja comunicar
algo ao mundo. Sim, porque, atualmente, "tudo" virou arte. A multiplicidade de
meios e de plataformas utilizadas para a produção artística é tão grande, que
qualquer tipo expressão, teoricamente, pode ser denominada "arte" se alguém
assim o determinar. E quem seria esse "alguém"? O próprio artista, para
começar, e depois os galeristas, críticos de arte, marqueteiros, as mídias e
todo o entourage que lhes dá aval. O fato é que se toda arte é expressão, nem toda expressão é arte. Simples assim.
Vamos, então, dar alguns exemplos com base no que vi na 30ª Bienal em duas visitas que fiz à
exposição. Vamos começar pelo próprio nome desta edição: Iminência das Poéticas. O
que significa? Significa que, aqui, é o processo criativo, o que houve por trás
da produção da obra que realmente importa. E não a obra acabada, o produto
final. É a intenção do artista que está valendo. Daí a profusão de vídeos
ininteligíveis, instalações aparentemente confusas e objetos desconexos, pelos
quais vi tantos visitantes passarem reto sem entender lhufas. É isso aí, a
arte de hoje precisa de bula para ser compreendida. Porque se você não souber o
que o artista quis dizer ou pretendeu com aquilo, pode esquecer. Você até
pode achar uma obra esteticamente curiosa ou interessante, mas daí a entendê-la
são outros quinhentos.
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Frase pintada em uma parede do térreo da Bienal - Foto: Simone Catto |
O problema é que, no meu caso, além da dificuldade de entender, à
primeira vista, tantas obras dessa Bienal, quase nada despertou a atenção de
meus sentidos. Entre as poucas obras que me atraíram, estavam os livros entrelaçados
de Odires Mlászho (1960,
Mandirituba, Brasil). Se o artista pretendeu transmitir uma mensagem com a obra,
sinceramente não sei. Só sei que achei o visual interessante. É arte? Também não
sei. Mas que é curioso, é.
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Obra de Odires Mlászho - Foto: Simone Catto |
As obras que me atraíram na sequência foram realizadas, sintomaticamente,
por um artista hoje reconhecido: Arthur
Bispo do Rosário (1909/11-89), figura cuja arte adquire uma dimensão mais
fascinante por estar diretamente associada aos problemas psiquiátricos de seu
autor.
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Obra que faz parte do 'Inventário do Mundo', de Arthur Bispo do Rosário - Foto: Simone Catto |
Nascido em Sergipe, Bispo
do Rosário mudou-se para o Rio de Janeiro em 1925. Entre as profissões que
exerceu, foi boxeador, marinheiro e trabalhou na Light. Após sofrer um surto
psicótico em 1938, foi diagnosticado como esquizofrênico-paranoico e transferido para a Colônia Juliano Moreira, em
Jacarepaguá. Começou seus trabalhos artísticos apenas no final da década de 60
e criou, até sua morte, cerca de 1.000 obras usando objetos do cotidiano que
comprava ou trocava e sobras de materiais descartadas pelo próprio hospital
onde estava internado, tais como pentes, botões, toalhas, roupas e ferramentas.
Além disso, executou inúmeros bordados com material de uniformes e lençóis que
desfiava. Bispo do Rosário foi descoberto em 1980 por Samuel Wainer Filho, que
mostrou sua produção em uma reportagem do 'Fantástico', da Rede Globo. Na
ocasião, afirmou ter recebido a missão de fazer um "inventário do mundo", para
que, quando morresse, pudesse entregá-lo reconstruído a Deus. O irônico é que
Bispo do Rosário não se considerava artista. Mas mais irônico, ainda, é
imaginar que muitos que se consideram não o são.
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Parte do "inventário" de Bispo do Rosário - Foto: Simone Catto |
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Pentes, gravatas... objetos do cotidiano que Bispo do Rosário pretendia mostrar a Deus quando morresse.
Foto: Simone Catto |
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Arthur Bispo do Rosário - Foto: Simone Catto |
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Arthur Bispo do Rosário - Foto: Simone Catto |
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Sim, Bispo do Rosário mostrou a Deus que na Terra também havia automóveis. Coitado se tivesse vivido para ver o trânsito de São Paulo! - Foto: Simone Catto |
Um trabalho que achei interessantíssimo são as Photo
Notes, do holandês Hans Eijkelom
(1949). Hans passou as últimas duas décadas coletando fotos de pessoas
anônimas, em vários países do mundo, que mostrassem o mesmo padrão visual no
vestuário. O resultado foram dezenas de séries que ocupam uma parede inteira da
Bienal. Há as séries de homens de camisas xadrezes, de senhoras com estampas de
oncinha, crianças com casacos coloridos e por aí vai.
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As séries de Hans Heijkelom: praticamente um estudo antropológico! - Foto: Simone Catto |
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Aqui predominavam os homens de camisa xadrez. Foto: Simone Catto |
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E aqui, senhoras de casaco branco! - Foto: Simone Catto |
Segundo relatou a Profª Dra. Silvia Meira, historiadora de arte
da USP que nos acompanhou em uma das visitas e havia presenciado o artista em
ação na Rua Oscar Freire, em São Paulo, sua tática para tirar as fotos é muito
engraçada. Ele fica horas parado discretamente num lugar, com sua câmera, e tão
logo avista um pedestre com um padrão de indumentária que lhe interesse, tira a
foto disfarçadamente. Assim que vê outro pedestre vestido no mesmo padrão, faz
outra foto, e assim por diante. As pessoas, naturalmente, não sabem que estão
sendo fotografadas. O resultado é quase um "estudo antropológico" visual no
qual o artista tenta nos mostrar como a globalização está massificando e
manipulando os gostos de todos em qualquer lugar do mundo. Está aí a
indumentária para comprovar!
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Os Rolling Stones agradam aos "tios"! rs - Foto: Simone Catto |
Em frente aos trabalhos de Hans está outra enorme coletânea de
séries de fotos, agora em preto e branco, realizadas com princípio semelhante.
Trata-se da mais importante obra do alemão August
Sander (1876-1964), denominada People of the 20th Century. Sander fotografou indivíduos de diversas esferas sociais, desde camponeses até
capitalistas, criando um catálogo tipológico do povo alemão com mais de
seiscentas imagens. Lá vemos séries de artistas circenses, de
mulheres, casais burgueses, velhos camponeses etc. Algumas fotos são realmente
impressionantes, sobretudo ao notarmos a mesma expressão no olhar de pessoas
com funções ou posições sociais semelhantes. É inquietante imaginar que, provavelmente,
a grande maioria daquelas pessoas capturadas num instante pela lente do
fotógrafo já se foi. Sem dúvida, um belo trabalho.
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O apanhado de tipos alemães de August Sander: impressionante! - Foto: Richard Vannucci |
Uma obra que achei perturbadora é Urine Reading, do
venezuelano Eduardo Gil (1973). O
artista fez uma instalação de colchões usados, recolhidos de orfanatos da
cidade de São Paulo, e chamou videntes para "ler" as histórias das crianças que
dormiam neles. As previsões foram gravadas em áudio e podemos ouvi-las, ao
aproximarmos nossos ouvidos de cada colchão. Gostaria de saber quem são esses
videntes e se essas pessoas realmente tiveram o poder de captar o que se passava
nas mentes e corações das pobres crianças. De qualquer modo, é triste nos deparar-nos com aqueles
colchões que, com ou sem vozes, carregam histórias de abandono.
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Eduardo Gil e os colchões das criancinhas em sua instalação: tão triste quanto perturbador - Foto: Simone Catto |
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A instalação de Eduardo Gil - Foto: Simone Catto |
Outra obra que me deteve um pouco foi O Teste do Homem sob a Chuva,
de Martín Legón (1978, Buenos Aires).
Consta que esse teste realmente existe e costuma ser aplicado a candidatos a vagas
de trabalho, que devem desenhar pessoas sob a chuva e têm características de
sua personalidade reveladas por meio da análise dos traços por psicólogos. Centenas
de desenhos de candidatos foram expostos na Bienal e analisados por três
profissionais: um psiquiatra, um curador de arte contemporânea e um
profissional de RH. É interessante analisar as diferenças entre um desenho e
outro, mas... novamente, faço a pergunta: seria isso arte?
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Um dos desenhos da instalação 'Teste de Homem sob a Chuva', de Martín Legón. Foto: Simone Catto |
Dê
um pulo na Bienal e tire suas próprias conclusões!
Pavilhão da Bienal – Parque
Ibirapuera – Portão 3 – Av. Pedro Álvares Cabral, s/n. Terças, quintas, sábados, domingos e
feriados: das 9h às 19h (entrada até as 18h). Quartas e sextas-feiras: das 9h
às 22h (entrada até as 21h). Há estacionamento no parque com Zona Azul (cada
folha vale por duas horas). Mais informações: www.bienal.org.br.
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