terça-feira, 24 de setembro de 2019

Vaison-la-Romaine e o prazer de escavar emoções em um sítio arqueológico.

A comuna de Vaison-la-Romaine já constava em meu roteiro de viagem para a Provence por várias razões. Uma delas, no entanto, já bastaria para justificar minha ida até lá: o lugar abriga o maior sítio arqueológico galo-romano da França. Eu mal podia esperar para caminhar entre as ruínas e ficar imaginando como deviam ser as casas que ali existiam na época em que Jesus Cristo ainda estava entre nós tentando impedir que a humanidade fizesse tanta lambança.   

O que eu não podia imaginar é que o sítio arqueológico fosse tão grande. Na realidade, não se trata de um, mas dois sítios que formam um complexo: Puymin e La Villasse, que ocupam algo como 15 hectares – o que, pelo padrão de medida francês, corresponde a 150.000 m². Como se não bastasse, a cidade de Vaison-la-Romaine tem uma respeitável herança medieval que também me surpreendeu com sua beleza arquitetônica e seus cantinhos pitorescos. Uma riqueza histórica e cultural impressionante para um village de parcos seis mil habitantes.

O fato é que tirei tantas fotos e há tantas informações interessantes, que um só post seria insuficiente para dar conta do recado. Por isso, resolvi dividir minha publicação sobre Vaison em duas partes. Nesta primeira, vou mostrar os sítios arqueológicos galo-romanos de Puymin e La Villasse com suas ruínas do século I a.C. ao século II d.C., época em que a comuna era denominada Vasio. E na próxima parte, vamos percorrer um pouco as ruas medievais da Cidade Alta.  

Os dois sítios arqueológicos estão separados da Cidade Alta pelo rio Ouvèze, que corta Vaison e já foi responsável por inundações catastróficas, a última ocorrida após uma chuva torrencial em setembro de 1992 que deixou 38 mortos e quatro desaparecidos. Felizmente, o rio estava comportado quando de minha visita. O curioso é que, apesar das inundações, a ponte romana que liga suas duas margens, construída no final do século I de nossa era, resistiu impávida e soberba. Prova de que os engenheiros de dois mil anos atrás podiam "dar um banho" - com o perdão do trocadilho! - de técnica e expertise em tantos profissionais de hoje. Composta de um único arco com 17 metros de comprimento e nove de largura, a ponte é bem graciosa e considerada a maior do período galo-romano.

Ponte romana de Vaison-la-Romaine - Foto: Internet

Ambos os sítios arqueológicos revelam vestígios de moradias, lojas de artesanato, ruas de comércio e termas públicos para banhos. Primeiramente visitei Puymin, que abrigou luxuosas residências. Uma delas, de fins do século I e início do século II, é chamada de "Casa do Apolo Laureado", porque no local foi encontrada uma cabeça do deus Apolo com sua coroa de louros. Com um traçado bastante elaborado, a casa tinha salões termais, sala de almoço, cozinha, banheiros privativos, átrios e vários outros ambientes, além de latrinas nos fundos.

Sítio arqueológico de Puymin - foto: Simone Catto

As próximas duas imagens são da "Casa do Apolo Laureado", onde os arqueólogos encontraram a cabeça do deus esculpida.

Vista da "Casa do Apolo Laureado", Puymin - foto: Simone Catto

Ruínas da "Casa do Apolo Laureado", Puymin - Foto: Simone Catto

Abaixo está a cabeça de Apolo que foi encontrada e uma ilustração representando a arquitetura da casa no século I.

A luxuosa residência e a bela cabeça do deus - Foto: Simone Catto

A decoração da residência devia ser sofisticada, já que há restos de pisos em mosaico, estátuas, afrescos e trabalhos de marchetaria em mármore.

Fiquei impressionada com o estado de conservação desse piso! - Foto: Simone Catto

Vestígio de afresco - Foto: Simone Catto

A próxima foto é de outra casa de Puymin chamada de "Maison à la Tonelle" (Casa do Caramanchão), e acredito que esse nome lhe tenha sido atribuído por causa de seus pilares, dos quais hoje restam somente as bases e que provavelmente deviam sustentar alguma estrutura que lembra um caramanchão. Dá para visualizar as ruínas dos pilares no fundo da foto abaixo.

A escadinha em primeiro plano resistiu! - Foto: Simone Catto

Foto: Simone Catto

No limite externo do terreno estão vários sarcófagos de pedra emparelhados lado a lado, de um período um pouco mais recente: séculos III d.C. e IV d.C. Ocorre que, com a expansão do Cristianismo, a partir de 314 d.C., a prática funerária da incineração foi substituída pelo sepultamento e era tradição local sepultar os mortos na parte externa da cidade.

Os sarcófagos de pedra dos primórdios do Cristianismo - Foto: Simone Catto

Outros achados arqueológicos, talvez à espera de catalogação - Foto: Simone Catto

Mais ao fundo, em um extremo do enorme terreno, está o anfiteatro restaurado onde seis mil espectadores podiam assistir a peças de teatro, comédias e pantominas. No entorno da estrutura, pilares da época galo-romana resistem ao tempo. O teatro segue ativo, exibindo espetáculos como concertos e balés.

Anfiteatro romano de Puymin - Foto: Simone Catto

Fragmento da parte externa do anfiteatro - Foto: Simone Catto

Não dá para visitar Puymin sem pelo menos dar uma passada no Museu Arqueológico Théo Desplans, dentro do próprio sítio arqueológico. O museu tem uma rica coleção de estátuas em mármore, mosaicos, esculturas, altares dedicados a divindades e vários objetos da vida cotidiana galo-romana. Duas grandes estátuas, belas e majestosas, chamaram minha atenção antes mesmo que eu soubesse que eram extremamente raras: o imperador Adriano e sua esposa Sabine. Segundo os arqueólogos, essas estátuas imperiais de mármore são achados bem incomuns. As estátuas de Adriano e Sabine foram descobertas na altura do palco do anfiteatro e é provável que estivessem em nichos no alto, o que explica suas dimensões: Sabine tem 2,06 m e Adriano 2,16 metros.

Imperador Adriano - Foto: Simone Catto

Imperatriz Sabine - Foto: Simone Catto

Adriano, do qual já ouvimos falar nos livros de história, nasceu em 76 d.C. na colônia de Italica, perto da atual Andaluzia, na Espanha, e foi imperador romano de 117 d.C. a 138 d.C. Consta que era um homem culto que sabia filosofia, falava bem o grego e o latim e fez uma boa administração. Sua escultura tem características helenísticas, como a nudez e a barba à maneira dos filósofos gregos. A coroa de louros com medalhões e o manto em seu ombro esquerdo são símbolos da dignidade imperial. Tanto sua estátua quanto a da imperatriz foram criadas em 128 d.C., ano em que Adriano provavelmente aceitou o título de Pater Patriae (Pai da Pátria) e em que são celebrados os dez primeiros anos de seu império. Foi em 128 d.C., também, que a imperatriz Sabine recebeu o título de "augusta".

Sabine (morta em 137 d.C.) veste a Tunica Muliebris (vestido de tecido fino que vai até os pés) com meias-mangas abotoadas. O penteado revela que a imperatriz devia ser bem estilosa: criado com apliques e cabelo natural trançados no alto da cabeça formando um turbante, além de duas tiaras de cabelo acima da testa, esse penteado estava na moda no século II a.C. Na foto abaixo dá para reparar melhor na manga do modelito e no penteado chique.

Foto: Simone Catto

Após Puymin, chegou a vez de visitar o sítio de La Villasse, ali ao lado. Para chegar até ele, passei por praças, jardins fechados e ruas charmosíssimas. Uma das praças tinha balanços e vi crianças brincando. Algumas casas, inclusive, estão bem de frente para o sítio arqueológico. São floridas, bem cuidadas, com fachadas encantadoras. E novamente, me peguei imaginando que tipo de vida devem levar as pessoas que nelas residem.

Rua charmosa com o sítio arqueológico de La Villasse ao fundo - Foto: Simone Catto

O lugar é encantador! - Foto: Simone Catto

Assim como em Puymin, os achados arqueológicos de La Villasse também atestam que lá havia residências, termas, átrios com jardins e uma rua com lojas, mostrando que aqueles romanos deviam ser bem animados.

Vista do sítio arqueológico de La Villasse - Foto: Simone Catto

O arco abaixo está impressionantemente bem conservado.

La Villasse - Foto: Simone Catto

Na foto abaixo, atrás do cipreste da direita, dá para notar uma escultura na frente de uma parede. E na foto seguinte, vemos um detalhe da própria, que aliás está incrivelmente bem conservada.

La Villasse, com uma bacia em primeiro plano - Foto: Simone Catto

La Villasse - Foto: P. Abel

Ao fundo do terreno, como se contemplasse esses tesouros arqueológicos, eis que se destaca uma bela casa bem mais moderna. Trata-se da residência do século XVIII da família dos marqueses de La Villasse, que tem sua fachada voltada para o sítio arqueológico e dá nome ao lugar, mostrando quem é que mandava no pedaço. O marquês de La Villasse foi prefeito de Vaison e era um homem ambicioso e autoritário que queria dominar as comunas vizinhas, acabando por ser assassinado em 1791, em sua própria mansão. A casa trocou de mãos por diversas vezes e consta que foi habitada até 1965, tendo-se tornado propriedade do Estado, que a utiliza como depósito de achados arqueológicos. Como não poderia deixar de ser, minha imaginação voou alto quando pensei na rotina dos moradores que, até 1965, podiam desfrutar de um quintal com dois mil anos de idade.

A casa dos marqueses de La Villasse e seu belo quintal em ruínas - Foto: Simone Catto

Um dos aspectos mais fascinantes desses sítios arqueológicos é que os trabalhos são contínuos, as escavações não cessam nunca. Isso significa que muitas outras riquezas podem ser encontradas! Vamos aguardar. 

Se você quiser conhecer minha experiência na parte medieval de Vaison-la-Romaine, clique aqui e bom passeio!

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