domingo, 19 de junho de 2016

Esotéricos ou intimistas, suaves ou intensos, os nabis seduzem no CCBB.

No post anterior, publiquei a primeira parte da resenha sobre uma exposição imperdível em São Paulo: 'O triunfo da cor', que reúne 75 obras pós-impressionistas de mais de trinta artistas no Centro Cultural Banco do Brasil. Falei sobre o pontilhismo e a cor "científica", abordei o grupo de Pont-Aven e mostrei, também, algumas obras de  Vincent Van Gogh e Paul Cézanne presentes na mostra. Num outro post, os fauvistas são o tema.

Foto: Simone Catto
Agora chegou a vez de um setor da exposição que muito me impressionou: o dos pintores nabis. Tudo começou quando Paul Sérusier (1864-1927), após sua temporada em Pont-Aven, retornou a Paris em outubro de 1888 com uma pequena pintura criada conforme os novos princípios de Paul Gauguin e a mostrou a seus colegas da Academia Julian. O quadro, uma paisagem do bosque d'Amour intitulada O Talismã, está na origem da criação do grupo dos nabis (da palavra "Nev'im", que significa "profetas", em hebraico). Esses artistas, que se consideravam os "profetas de uma nova arte", defendiam uma concepção decorativa da pintura, na qual a cor teria a função de realçar o tema.

Paul Sérusier - 'O Talismã, o Rio Aven no bosque d'Amour' - outubro de 1888 - Musée d'Orsay

Temos duas correntes de nabis: aqueles que eram mais afeitos às temáticas religiosas, esotéricas e abstratas, tais como Sérusier, Paul Ranson (1864-1909), Maurice Denis (1870-1943) e Ker-Xavier Roussel (1867-1944), e também aqueles que apreciavam mais as questões íntimas da vida moderna e cotidiana, representados por Édouard Vuillard (1868-1940), Pierre Bonnard (1867-1947), Aristide Maillol (1861-1944) e Félix Vallotton (1865-1925). Ora suaves, ora vivas, as cores sempre expressam com emoção as visões do grupo. Denis, Bonnard, Valloton e Vuillard preferiam as cores subjetivas que conferiam a suas telas uma iluminação misteriosa. Todos eram admiradores de Odilon Redon (1840-1916), o artista simbolista que usava um cromatismo sofisticado para conferir a suas pinturas uma dimensão sobrenatural e paradisíaca.

Pierre Bonnard - 'Interior, mulher e crianças' (1899) - óleo s/ cartão colado em madeira
parquetada - Musée d'Orsay - Foto: Simone Catto

Um dos artistas nabis que mais me fascinaram na exposição é Maurice Denis. Por vezes ele utilizou cores em transições suaves, e por outras aplicou na tela blocos de cores contrastantes realçadas pelo contorno preto em algumas figuras. Na tela abaixo, Denis retrata as musas das artes e da ciência, tema emprestado da mitologia clássica, mas as musas vestem trajes contemporâneos e estão em um terraço de Saint-Germain-en-Laye, cidade onde o artista passou toda a sua vida. Se não lêssemos o título da obra, dificilmente identificaríamos as mulheres como musas. Toda a pintura tem um tom meio sóbrio e outonal. As cores são aplicadas de forma homogênea e as figuras são bem delimitadas. O espaço carece de profundidade nesse "bosque sagrado" onde ocorre uma revelação ou "comunicação misteriosa entre os personagens, a natureza e as forças sobrenaturais", segundo o texto da exposição.


Maurice Denis - 'As Musas' (1893) - óleo s/ tela - Musée d'Orsay
Foto: Simone Catto

A obra abaixo chama-se Tarde de outubro e era, originalmente, um painel para a decoração do quarto de uma jovem. Essa pintura foi criada num momento em que a arte de Denis tornava-se mais sintética e, ao lado de outros jovens artistas do grupo nabis, priorizava as obras de arte decorativas. O pintor Jan Verkade (1868-1946) chegou mesmo a proclamar à época: "Um grito de guerra foi lançado de ateliê em ateliê: basta de quadros de cavalete (...) agora serão apenas decorações". As mulheres, etéreas, não têm rostos, e "a paleta dos tons madrepérola e acastanhados, trabalhados em degradê, cria um cromatismo requintado, que contribui para a serenidade do conjunto" – segundo o texto da exposição. Além disso, "o movimento sutil dos arabescos nas silhuetas femininas" e as ranhuras em estilo japonês nos caules das castanheiras já preconizavam o movimento Art Nouveau que viria a seguir.

Maurice Denis - 'Tarde de outubro' (1891) - óleo s/ tela - Musée d'Orsay - Foto: Simone Catto

O Retrato de Yvonne Lerolle de três formas, abaixo, é uma homenagem do artista à sua amiga Yvonne, filha do mecenas Henry Lerolle. Atrás do retrato central, duas outras imagens da moça se encaixam numa paisagem onde diversos e belos tons de azul predominam sobre os verdes. Essa tripla representação de Yvonne em diferentes fases da vida mostra o gosto de Denis por representações alegóricas dos diversos momentos da existência e nos faz lembrar, como Mallarmé e Proust, que a "verdade de uma pessoa" é a somatória de seus sucessivos ressurgimentos, conforme explica outro texto da mostra.

Maurice Denis - 'Retrato de Yvonne Lerolle de três formas' (1897) - óleo s/ tela
Musée d'Orsay - Foto: Musée d'Orsay

Foto: Simone Catto

As pinturas de Denis a seguir não são menos expressivas, apesar de suas pequenas dimensões: elas são bem menores que as anteriores, possuindo apenas cerca de 25 cm a 30 cm. O colorido intenso e a riqueza simbólica, no entanto, saltam aos olhos nessas pequenas joias.

Maurice Denis - 'A oferenda no calvário' (1890) - óleo s/ tela - Musée d'Orsay
Foto: Simone Catto

Maurice Denis - 'Mancha de sol no terraço' (1890) - óleo s/ cartão - Musée d'Orsay - Foto: Simone Catto

Maurice Denis - 'Na janela do trem' (1890) - óleo s/ madeira - Musée d'Orsay - Foto: Simone Catto

Outros dois nabis, Édouard Vuillard e Félix Vallotton, se notabilizaram pelas cenas de intimidade nos interiores de residências nas quais representaram parentes ou amigos como se estes estivessem num cenário de teatro. A temática das pinturas de Vallotton, com seus personagens solitários e sua quietude, me evocaram algumas telas de Edward Hopper, o hiper-realista americano da geração seguinte.

A pintura a seguir mostra a esposa de Vallotton, Gabrielle, procurando algo num armário, de costas para o espectador. Gabrielle Rodrigues-Henriques, com quem o artista se casou em 1899, era filha do marchand Alexandre Bernheim. Não foram raras as vezes em que Vallotton retratou, com uma certa mordacidade, o estilo de vida burguês no qual havia se inserido.

Félix Vallotton - 'Interior, mulher de azul vasculhando um armário' (1903)
óleo s/ tela - Musée d'Orsay - Foto: Simone Catto

É Gabrielle quem aparece novamente na pintura abaixo, como mera coadjuvante para o cenário em que se encontra. Ela está de escanteio, penteando os cabelos enquanto provavelmente mira-se no espelho de sua penteadeira, e os braços para cima sequer permitem que vejamos seu rosto. Parece que o verdadeiro "modelo" do quadro é o dormitório, notadamente a poltrona "bagunçada" que ocupa o centro da tela. À esquerda está uma caixa de costura entreaberta, e à direita a cama está desarrumada. Os tons de rosa criam uma harmonia sofisticada com os de azul, e o conjunto todo transmite uma sensação cálida de conforto e intimidade. Exibido no primeiro Salão de Outono de Paris, em 1903, esse quadro obteve um sucesso considerável devido à simplicidade de seu tema e ao virtuosismo técnico do artista.

Félix Vallotton - 'Mulher se penteando' (1900) - óleo s/ cartão - Musée d'Orsay - Foto: Simone Catto

Até 1902-1903, Vallotton pintou vários quadros representando sua esposa e seus filhos, bem como parentes de Gabrielle. Na pintura abaixo, sua sogra Henriette Bernheim aparece de costas jogando cartas com outros membros da família. Vale ressaltar que nessa época a relação entre o artista e a família da esposa começava a se deteriorar, e o texto da exposição menciona um certo "mal-estar que se cristaliza na distorção do espaço e na presença transbordante dos móveis" e também o "aspecto enclausurado da sala, com sua tapeçaria e a cortina fechada". Será que a disposição dos elementos na tela realmente traduz um mal-estar do artista? Ou ele estava apenas sendo moderno? A minha percepção pessoal, pelo menos, não é de opressão, e sim de quietude e concentração no jogo.

Félix Vallotton - 'Jogo de pôquer' (1902) - óleo s/ cartão - Musée d'Orsay - Foto: Simone Catto

Édouard Vuillard passou a frequentar o grupo dos nabis em 1899 e o autorretrato abaixo é uma das obras mais célebres e radicais dessa época. As formas são simplificadas ao extremo e o rosto é constituído por camadas de tinta sobrepostas. A depuração das linhas, a intensidade das cores e a exacerbação dos componentes plásticos resultaram num autorretrato de grande intensidade e força expressiva. (Em tempo: achei-o parecido com Van Gogh nesse autorretrato!) 

Édouard Vuillard - 'Autorretrato octogonal' (c. 1890) - óleo s/ cartão colado
em madeira compensada - Musée d'Orsay - Foto: Simone Catto

Entre 1891 e 1892, o leito doméstico foi um tema recorrente em obras de pequeno formato de Vuillard. Na pintura abaixo, os blocos de camadas densas de tinta, firmemente destacados uns dos outros, quase criam uma ilusão de relevo. As formas são simples, os elementos são parcos e o leque de cores é voluntariamente restrito, mas isso basta para captarmos o momento e a situação que o artista quis retratar. Essa simplicidade, frugalidade e contenção nos deixam entrever, também, uma nítida influência da pintura japonesa.

Édouard Vuillard - 'O sono' (c. 1892) - óleo s/ tela - Musée d'Orsay - Foto: Simone Catto

Mas a exposição não para por aí! Clique AQUI para ler a resenha sobre os FAUVES e AQUI para saber um pouco sobre os PONTILHISTAS e a ESCOLA DE PONT-AVEN.

Só para lembrar: a exposição O TRIUNFO DA COR vai até 7/7 no Centro Cultural Banco do Brasil: Rua Álvares Penteado, 112 – Centro. Abre de quarta a segunda-feira, das 9h às 21h. A entrada é franca, mas, para evitar filas, reserve sua visita pelo site: www.culturabancodobrasil.com.br. Não deixe de ir!

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