Texto original: Alison W. Chang – Artsy – 11/2/2016 | Tradução e adaptação: Simone Catto
No dia 23 de julho de 1877, uma multidão se aglomerava numa
sala de tribunal parisiense para assistir ao julgamento da "Viúva Cinza",
acusada de induzir um trabalhador a jogar ácido na face de seu amante. O crime,
e outros como este, inspirou o artista suíço Eugène Grasset (1845-1917) a criar a obra 'La vitrioleuse' (algo
como "A Atiradora de Ácido Sulfúrico"), de 1894. Com a mão suspensa, a mulher na
gravura se volta para encarar o espectador com seus frenéticos olhos de um
verde pálido, possivelmente indicativos de seu estado emocional.
Eugène Samuel Grasset - 'La Vitrioleuse' (A Atiradora de Ácido Sulfúrico) (1894) Hammer Museum, Los Angeles |
Motivo comum nas artes visuais e na literatura do final do
século XIX, época do Pós-Impressionismo e do Simbolismo, mulheres fatais como a "Viúva Cinza" adquiriam uma variedade de representações que iam da mulher comum
até vampiras e harpias. A femme fatale
era apresentada como insensível, traiçoeira e violenta, frequentemente usando
seus poderes de sedução como uma forma de destruir seus inimigos.
Esse arquétipo ficou em evidência em parte como resposta à
mudança do status da mulher na sociedade. Ao longo do século XIX, na França e
no norte da Europa, ativistas conseguiram progressos em relação aos direitos
políticos e civis das mulheres e desafiaram as tradicionais crenças sobre o
papel da mulher no trabalho, em casa e nas relações românticas. Enquanto se esperava
que as esposas fossem obedientes e subservientes a seus maridos, muitos
artistas e escritores do final do século XIX retratavam mulheres sedutoras,
poderosas e perigosas, refletindo o medo que a sociedade sentia das mulheres que
adquiriam cada vez mais autonomia. Embora muitas dessas obras possam ser
interpretadas como misóginas, elas são produto de seu tempo, manifestando uma
resposta aos desafios das definições pré-estabelecidas de masculinidade e
feminilidade durante o século XIX.
A femme fatale como monstro
Edvard Munch - 'Vampira II' (1893) - Galerie Thomas, Munique |
Gustave Moreau - 'Édipo e a Esfinge' (1864) Metropolitan Museum of Art, New York |
A pintura Vampira (1893), do artista norueguês
Edvard Munch (1863-1944), foi originalmente exibida como Amor e Dor até um
autor e admirador de sua obra rebatizá-la como Vampira em junho de 1894,
criando uma nova e duradoura narrativa em torno da pintura. O título transforma
a imagem de um casal de amantes se abraçando intensamente na visão de uma
mulher opressora executando uma vingança brutal. Vampiras não eram as únicas
criaturas míticas retratadas como femmes
fatales no período.
A esfinge com cabeça de mulher, corpo de leão e asas de
pássaro aparece como uma femme fatale
na obra Édipo e a Esfinge (1864), de Gustave Moreau (1826-1898). Dotada
de uma violência enigmática e animal, a esfinge crava suas garras no peito de
Édipo, as patas traseiras perigosamente próximas de sua genitália, realçando a
imagem de tensão sexual. Retratar a femme
fatale como uma criatura monstruosa dava uma forma visível àqueles traços
que os artistas consideravam grotescos em uma mulher: a predileção por um
comportamento lascivo, o engano e a manipulação.
Revisitando
famosas femmes fatales
Franz von Stuck - 'Die Sünde' (Pecado) (c.1908) - Frye Art Museum, Seattle |
Gustave Moreau - 'L'Apparition' (1874-76) - Musée du Louvre, Paris |
Artistas como Moreau, Paul Gauguin (1848-1903), Gustav Klimt
(1862-1918), Franz von Stuck (1863-1928) e Jan Toorop (1858-1928) pareciam
conhecer bem as femmes fatales
históricas e bíblicas para reforçar os perigos de se sucumbir a seu apelo
sexual. Na pintura de von Stuck Die Sünde (Pecado), que faz alusão a
Eva no Jardim do Éden, uma mulher nua olha agressivamente para o espectador com
uma serpente enrolada em seu torso e pescoço, de forma a emoldurar seus seios e
reforçar seu poder de sedução. Salomé, a notória femme fatale do Novo Testamento, também foi um assunto popular
entre os artistas do século XIX. Na história, sua dança sexualizada convence
Herodes a lhe entregar uma recompensa e ela exige a cabeça de João Batista em
uma bandeja. A aquarela de Moreau A Aparição (1874-76) mostra uma
Salomé seminua envolta por uma visão de sua conquista, a cabeça decepada de
João Batista. A restauração dessas mulheres perigosas tanto na literatura
quanto nas artes visuais serviu como uma fábula para advertir e doutrinar os
homens e mulheres do período.
As femmes fatales de todo dia
Félix Valloton - 'Le Mensonge' (A Mentira), da série 'Intimités' (Intimidades) (1897) - Museum of Modern Art, New York |
Edvard Munch - 'Separação' (1896) - Museu Munch, Oslo |
Nem todas as amantes na arte do fin-de-siècle eram vilãs de proporções míticas. Os artistas também
retratavam as mágoas e complexidades das relações românticas usuais. O artista
suíço Félix Valloton (1865-1925) é talvez mais conhecido por sua série de
xilogravuas Intimités (Intimidades), a qual oferece um olhar sobre as vidas
privadas de casais parisienses em momentos de grande vulnerabilidade emocional.
Em uma das gravuras da série, Le Mensonge (A Mentira), um casal se
abraça enquanto a mulher sussurra algo ao ouvido do homem. A intimidade do
casal está em desacordo com o título da obra, implicando que sua harmonia
romântica é apenas uma fachada. Munch também se refere à dor de amor em sua
pintura Separation, de 1896. Enquanto uma jovem contempla o infinito do
oceano, seu amante vira as costas. O cabelo dela envolve o coração do rapaz,
uma manifestação física de sua conexão emocional. Enquanto ela rompe o
relacionamento, ele se curva em dor, a mão manchada de sangue agarrada ao
coração. Esses artistas mostram o amor como algo traumático, violento e tumultuoso,
revelando a natureza complexa dos relacionamentos na virada do século.
N.T.¹:
a fim de complementar o texto, incluí as datas de nascimento e morte dos
artistas e as localidades dos museus mencionados nas legendas das imagens.
N.T.²:
a imagem da obra ''Édipo e a Esfinge', de Gustave Moreau, não se encontra na
matéria original em inglês, mas acrescentei aqui para melhor exemplificar o
texto.
Muito bom, Simone! Bjs. Eloisa Reis
ResponderExcluirFico feliz que tenha gostado, Eloisa! Bjs
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