sábado, 23 de abril de 2016

'Femmes Fatales' e Perigosas Vampiras: mulheres do século XIX na arte.

Texto original: Alison W. Chang – Artsy – 11/2/2016 | Tradução e adaptação: Simone Catto


No dia 23 de julho de 1877, uma multidão se aglomerava numa sala de tribunal parisiense para assistir ao julgamento da "Viúva Cinza", acusada de induzir um trabalhador a jogar ácido na face de seu amante. O crime, e outros como este, inspirou o artista suíço Eugène Grasset (1845-1917) a criar a obra 'La vitrioleuse' (algo como "A Atiradora de Ácido Sulfúrico"), de 1894. Com a mão suspensa, a mulher na gravura se volta para encarar o espectador com seus frenéticos olhos de um verde pálido, possivelmente indicativos de seu estado emocional.

Eugène Samuel Grasset - 'La Vitrioleuse' (A Atiradora de Ácido Sulfúrico) (1894)
Hammer Museum, Los Angeles

Motivo comum nas artes visuais e na literatura do final do século XIX, época do Pós-Impressionismo e do Simbolismo, mulheres fatais como a "Viúva Cinza" adquiriam uma variedade de representações que iam da mulher comum até vampiras e harpias. A femme fatale era apresentada como insensível, traiçoeira e violenta, frequentemente usando seus poderes de sedução como uma forma de destruir seus inimigos.

Esse arquétipo ficou em evidência em parte como resposta à mudança do status da mulher na sociedade. Ao longo do século XIX, na França e no norte da Europa, ativistas conseguiram progressos em relação aos direitos políticos e civis das mulheres e desafiaram as tradicionais crenças sobre o papel da mulher no trabalho, em casa e nas relações românticas. Enquanto se esperava que as esposas fossem obedientes e subservientes a seus maridos, muitos artistas e escritores do final do século XIX retratavam mulheres sedutoras, poderosas e perigosas, refletindo o medo que a sociedade sentia das mulheres que adquiriam cada vez mais autonomia. Embora muitas dessas obras possam ser interpretadas como misóginas, elas são produto de seu tempo, manifestando uma resposta aos desafios das definições pré-estabelecidas de masculinidade e feminilidade durante o século XIX.

A femme fatale como monstro

Edvard Munch - 'Vampira II' (1893) - Galerie Thomas, Munique

Gustave Moreau - 'Édipo e a Esfinge' (1864)
Metropolitan Museum of Art, New York

A pintura Vampira (1893), do artista norueguês Edvard Munch (1863-1944), foi originalmente exibida como Amor e Dor até um autor e admirador de sua obra rebatizá-la como Vampira em junho de 1894, criando uma nova e duradoura narrativa em torno da pintura. O título transforma a imagem de um casal de amantes se abraçando intensamente na visão de uma mulher opressora executando uma vingança brutal. Vampiras não eram as únicas criaturas míticas retratadas como femmes fatales no período.

A esfinge com cabeça de mulher, corpo de leão e asas de pássaro aparece como uma femme fatale na obra Édipo e a Esfinge (1864), de Gustave Moreau (1826-1898). Dotada de uma violência enigmática e animal, a esfinge crava suas garras no peito de Édipo, as patas traseiras perigosamente próximas de sua genitália, realçando a imagem de tensão sexual. Retratar a femme fatale como uma criatura monstruosa dava uma forma visível àqueles traços que os artistas consideravam grotescos em uma mulher: a predileção por um comportamento lascivo, o engano e a manipulação.

Revisitando famosas femmes fatales

Franz von Stuck - 'Die Sünde' (Pecado) (c.1908) - Frye Art Museum, Seattle

Gustave Moreau - 'L'Apparition' (1874-76) - Musée du Louvre, Paris

Artistas como Moreau, Paul Gauguin (1848-1903), Gustav Klimt (1862-1918), Franz von Stuck (1863-1928) e Jan Toorop (1858-1928) pareciam conhecer bem as femmes fatales históricas e bíblicas para reforçar os perigos de se sucumbir a seu apelo sexual. Na pintura de von Stuck Die Sünde (Pecado), que faz alusão a Eva no Jardim do Éden, uma mulher nua olha agressivamente para o espectador com uma serpente enrolada em seu torso e pescoço, de forma a emoldurar seus seios e reforçar seu poder de sedução. Salomé, a notória femme fatale do Novo Testamento, também foi um assunto popular entre os artistas do século XIX. Na história, sua dança sexualizada convence Herodes a lhe entregar uma recompensa e ela exige a cabeça de João Batista em uma bandeja. A aquarela de Moreau A Aparição (1874-76) mostra uma Salomé seminua envolta por uma visão de sua conquista, a cabeça decepada de João Batista. A restauração dessas mulheres perigosas tanto na literatura quanto nas artes visuais serviu como uma fábula para advertir e doutrinar os homens e mulheres do período.

As femmes fatales de todo dia

Félix Valloton - 'Le Mensonge' (A Mentira), da série 'Intimités' (Intimidades) (1897) - Museum of Modern Art, New York

Edvard Munch - 'Separação' (1896) - Museu Munch, Oslo

Nem todas as amantes na arte do fin-de-siècle eram vilãs de proporções míticas. Os artistas também retratavam as mágoas e complexidades das relações românticas usuais. O artista suíço Félix Valloton (1865-1925) é talvez mais conhecido por sua série de xilogravuas Intimités (Intimidades), a qual oferece um olhar sobre as vidas privadas de casais parisienses em momentos de grande vulnerabilidade emocional. Em uma das gravuras da série, Le Mensonge (A Mentira), um casal se abraça enquanto a mulher sussurra algo ao ouvido do homem. A intimidade do casal está em desacordo com o título da obra, implicando que sua harmonia romântica é apenas uma fachada. Munch também se refere à dor de amor em sua pintura Separation, de 1896. Enquanto uma jovem contempla o infinito do oceano, seu amante vira as costas. O cabelo dela envolve o coração do rapaz, uma manifestação física de sua conexão emocional. Enquanto ela rompe o relacionamento, ele se curva em dor, a mão manchada de sangue agarrada ao coração. Esses artistas mostram o amor como algo traumático, violento e tumultuoso, revelando a natureza complexa dos relacionamentos na virada do século.

N.T.¹: a fim de complementar o texto, incluí as datas de nascimento e morte dos artistas e as localidades dos museus mencionados nas legendas das imagens.

N.T.²: a imagem da obra ''Édipo e a Esfinge', de Gustave Moreau, não se encontra na matéria original em inglês, mas acrescentei aqui para melhor exemplificar o texto.

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